terça-feira, 31 de agosto de 2010

PRATICANTE A PILOTO NÁUTICO NOMEADO CAPITÃO INTERINO (Parte I)



É DIFÍCIL DE ACREDITAR, MAS PELO QUE ME CONTARAM ACONTECEU MESMO!


Francisco de Oliveira Alegre (Maraje)
Contava o meu pai e mais familiares, que um seu tio, e como tal meu tio-avô, de seu nome Francisco de Oliveira Alegre (Maraje), praticante a piloto náutico, comandara interinamente uma barca de três mastros desde Nova Orleães até ao Porto, a cuja praça pertencia.
Aconteceu que o capitão da barca falecera quando da escala do seu navio naquele porto, e os dois oficiais subalternos, por qualquer motivo que se ignora, estranhamente não quiseram assumir a nomeação de comando da barca no seu regresso ao Porto. Em face da situação, ou porque não se conseguisse um capitão Americano, o cônsul de Portugal naquela cidade do Golfo do México viu-se embaraçado, e uma vez que o navio já se encontrava com um carregamento completo de aduelas destinadas à industria tanoeira para o fabrico de cascaria para acondicionamento do vinho do Porto, há já bastantes dias, e a mercadoria estaria a fazer falta, em ar de chalaça virou-se para os dois praticantes e confrontou-os, perguntando-lhes se eram capazes de levar o navio para Portugal, ao que eles não se negaram, e uma vez que ambos estavam no termo das derrotas necessárias para se habilitarem a piloto, e talvez autorizado pela competente autoridade Portuguesa, nomeou o meu tio-avô como capitão interino da barca, cujo nome ignoro, mas que eu ouvia falar muito das barcas CLARA e LAURA, e como tal poderia muito bem o insólito episódio se ter passado numa dessas duas barcas. Julgo saber, que outro praticante tinha o apelido “da Bela” ou “da Velha”, e era natural de Ílhavo.
No meu entendimento a nomeação, possivelmente teria sido simbólica, o certo é que a barca em causa, entrou a barra do Porto, e amarrou à margem de Gaia, ali junto às caves de vinho do Porto, a salvo e com a carga intacta e seca, e parece que o seu armador de tão contente, correu à capitania ou à escola náutica, a fim de tentar promover a oficial, aquele jovem praticante a piloto náutico, residente na Foz do Douro, onde nascera a 27/03/1880, o que como seria óbvio o armador não foi bem sucedido nos seus intentos.



O autor com o óculo deixado por seu tio-avô, observando NAVIOS À VISTA, que navegam à vela de rumo aos portos do Douro e Leixões em 04/08/1994, dentre os quais a escuna Irlandesa ASGARD II, que ainda se encontra para lá da linha do horizonte.

Apesar de ter de minha posse um compêndio de aritmética e um óculo telescópico, e ainda dois diários náuticos já muito estragados, que pertenceram ao meu tio-avô, infelizmente o diário náutico da viagem de Nova Orleães para o Porto deve ter ficado com alguém, que possivelmente o perdeu ou por ignorância o destruiu, pois se tivesse ficado de posse de meu pai, hoje, certamente eu teria a possibilidade de melhor relatar este inédito episódio.
Nessa mesma viagem, o jovem Francisco de Oliveira Alegre, desembarcou para continuar os estudos na Escola Náutica da Cidade do Porto, o que, fatidicamente parece que nem sequer chegou a tratar da matricula, dado que após cerca de ano e meio de padecimento falecera, mais propriamente a 04/08/1904, devido a lesões graves sofridas por agressões infligidas numa emboscada propositada por conterrâneos invejosos, por o verem progredir na vida.
È que o ousado praticante a piloto náutico, que fora pescador e moço das embarcações dos pilotos, e quase que não sabia ler nem escrever, ai pelos seus 15 anos de idade, resolveu tentar a vida de marinheiro juntamente com um outro camarada, o Ernesto, que eu ainda cheguei a conhecer, e mais tarde foi assalariado da corporação de pilotos, e ambos meteram-se numa bateira na Cantareira e lá foram rio acima à vela ou a remos até aos ancoradouros dos lugares do cais de Massarelos e do cais das Pedras, onde se encontravam amarrados em preparativos e aprovisionamentos, a fim de encetarem novas singraduras para os Brasis, Américas, Europas, e por esses mares fora, vários navios, tais como vapores, barcas, galeras, brigues, patachos, escunas, caíques, hiates, palhabotes, etc.



Navios amarrados junto do lugar do Cais das Pedras, rio Douro, no inicio do século XX, dentre os quais se vêm as barcas ARCELINA, OLIVEIRA e VENTUROSA / postal ilustrado da série "Margens do Douro" da edição Estrela Vermelha.

Uns capitães não precisavam, porque já tinham o lotamento preenchido, outros convidaram-nos a vir dias mais tarde a ver o que se arranjava, até que o capitão duma barca que estava pronta a zarpar, aceitou-os como moços de convés, e aí começava a sua vida de marinheiro, tendo realizado um sem número de viagens. O Ernesto, logo na primeira viagem e regressado ao Porto pede o desembarque, mas o meu tio-avô continuou na mesma barca por mais alguns anos até desembarcar para completar a instrução primária, o 2º grau como então se dizia, e de seguida ingressar na escola náutica, tudo isso incentivado pelo seu capitão, que durante as várias viagens o foi ensinando a escrever, ler e fazer contas.
Completado o curso de pilotagem da marinha mercante, ele aí vai de novo para o mar, embarcando como praticante a oficial, na sua antiga barca ou mesmo noutra qualquer.
Os diários náuticos de minha posse relatam as derrotas feitas por meu tio-avô nas seguintes barcas de três mastros:



Página de Diário Náutico da barca NANNY

NANNY de Franz Ferdinand Burmester, gestores Hermann Burmester & Ca, do Porto
Capitão José Marques de Sousa / Imediato José d’Oliveira da Velha
Saída do Porto 19/10/1899 em lastro de areia e cortiça e entrada em Nova Iorque 23/01/1900
Saída de Nova Iorque 23/02/1900 com trigo e entrada no Porto 04/04/1900
Viagem de cerca de 195 dias (6 meses e 15 dias) entre mar e estadia portuária em Nova Iorque, uma verdadeira “eternidade”. O armador não deve ter ganho para as despesas!
Revendo o diário náutico relativo à barca NANNY deparei com uma discrepância que não consigo entender, uma vez que nos espaços referente a NOVIDADES, e sem que haja falta de folhas, não existe qualquer anotação relativa a substituição do capitão e do imediato.
Acontece que na abertura do diário náutico ainda no Porto, o nome do capitão é José Marques de Sousa e do imediato José d’Oliveira da Velha, conquanto à chegada a Nova Iorque, o termo da derrota, está assinado pelo capitão e imediato José d’Oliveira da Velha, o mesmo se vendo na abertura do diário náutico à saída de Nova Iorque, além de que o imediato passou a ser um dos praticantes a piloto, de nome Manoel d’Oliveira da Velha, e no termo da derrota à chegada ao Porto, está assinada pelo capitão José d’Oliveira da Velha.
Será que naqueles tempos estaria na moda os praticantes passarem a oficiais superiores interinos!?
LEONOR, de João Alves de Freitas, Porto
Capitão Balthazar Alves da Conceição / Imediato Constantino d’Azevedo e Cunha
Saída do Porto 26/12/1900 com toros de pinheiro e entrada em Newport, País de Gales 11/01/1901
Saída de Newport, Pais de Gales, 16/03/1901 com carvão e entrada em Belém do Pará 25/04/1901
Saída de Belém do Pará 12/06/1901 em lastro de areia e madeira, e fundeou frente à barra do Porto 14/07/1901, e conservou-se com piloto da barra embarcado. Entrou em Leixões a 19/07/1901.
AMÉRICA, de Glama & Marinho, Porto
Capitão José Ançã / Imediato António Pinto da Costa
Saída do Porto 02/10/1901 com toros de pinheiro, e entrada em Newport, País de Gales, 18/10/1901.
Saída de Newport, País de Gales, 15/11/1901 com carvão, e entrada no Porto 24/11/1901.
imo 1074474 / 70m/ 799tb; 09/1875 launched by R & J. Evans & Co, Liverpool, como CRAIGMULLEN para W.Killey & Co,, Liverpool; 1900 BEIRA, Armador de Lisboa não identificado; 1901 Glama & Marinho, Porto; A AMÉRICA veio rio Douro abaixo na cheia de 1909 e encalhou junto da antiga capela de S. Pedro da Afurada, mais tarde foi safa e convertida em pontão de carga, tendo um ano depois sido desmantelada.
A barca como CRAIGMULLEN em 1895, depois de sair de Singapura para Callao, Perú, com um carregamento completo de arroz, via Estreito de Sonda, foi dada como desaparecida, tendo sido encontrada cerca de um ano depois à deriva, em pleno Oceano Pacifico, com apenas 3 sobreviventes de um lotamento de 25, em estado completamente desesperante, um dos quais foi o imediato, tendo desses três um deles falecido aquando era tratado no navio salvador.
Parece que o meu tio-avô, também andou embarcado na CLARA, só que não sei se de moço de marinheiro ou de praticante.



Página de Diário Náutico - termo de derrota - da barca NANNY

Note-se na duração das viagens que eram lentas, e ainda para mais com as perigosas tempestades, incómodas calmarias e ventos contrários, e ainda o tempo de demora nos portos, em relação aos dias de hoje, que em viagens directas faz-se a “round trip” Porto/Newport em cerca de oito dias, e a estadia nos portos anda à volta de dez horas. Na minha actividade profissional já atendi porta-contentores que no porto de Leixões atracavam às 07h00 e às 12h00 já iam de largada e ainda saiam de Vigo no mesmo dia.
Numa das suas viagens como praticante a piloto, a barca fora dada como naufragada com toda a sua tripulação pelas autoridades marítimas em parte incerta, pois o tempo previsto de chegada ao Porto já tinha sido demasiadamente ultrapassado, e outras embarcações que vinham na mesma rota não traziam qualquer sobrevivente nem davam boas novas, pelo que os familiares já se preparavam para mandar celebrar missa pelas suas almas, quando um certo dia o telegrafista da Estação Semafórica Marítima do Monte da Luz, avistou uma barca de três mastros ao Noroeste, e reconhecendo, era a barca em causa, que mais tarde e na Graça de Deus demandou a barra do Porto a salvamento, se bem que com algumas avarias visíveis. Aconteceu que a barca que chegou a estar com a costa Norte à vista, devido ao muito mau tempo e mar que se prolongou por alguns dias, ao ponto de por vezes ter o convés mergulhado, e não conseguindo meter-se de capa, teve de correr ao tempo e desviar-se da usual rota.
O Francisco de Oliveira Alegre era um dos sete filhos (4 homens e 3 mulheres) José de Oliveira Alegre (Maraje) e de Maria Teresa da Cunha oriundos da freguesia São Cristóvão de Ovar, que vieram assentar arraiais na Foz do Douro, nas artes pesqueiras, e dois dos seus irmãos também seguiram a vida marinheira.
Eusébio de Oliveira Alegre (Maraje), falecido com 53 anos em 11/07/1928, no Rio de Janeiro, foi chefe de máquinas dos memoráveis paquetes “ITAS” da Companhia Nacional de Navegação Costeira, do Rio de Janeiro, e parece ter alcançado o lugar de oficial inspector da frota em terra.
Manuel de Oliveira Alegre (Maraje), falecido com 86 anos em 17/05/1969, pescador, piloto da barra, e reformou-se como sota-piloto-mor do Douro e Leixões, após 52 anos, ao serviço da corporação de pilotos, tendo também passado por seu trabalhador eventual e assalariado.

(continua)
Rui Amaro

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