Boa pescaria parece ter tido este "homem dos dories" do lugre ARGUS, Jacinto da Costa Jr "Bexiga", dos Açores, que exibe, satisfeito, mais um bom exemplar de "fiel amigo" e pode muito bem ter sido o "primeira linha" do seu lugre. /gravura de reportagem de "O Comércio do Porto", década de 60/.
A Foz do Douro, também terra que foi de marítimos, desde pescadores a pilotos e capitães náuticos, na pesca do bacalhau dos Grandes Bancos da Terra Nova e Groenlândia não teve grande apetência, apesar da razoável frota da praça do Porto, e pode-se contar pelos dedos os poucos homens que fizeram dessa actividade a sua profissão. Recordo-me do Rodrigo, pescador e marinheiro do lugre “Aviz”, e mais tarde assalariado da Corporação de Pilotos da Barra e patrão do salva-vidas “Visconde de Lançada”, o Calisto e Seixas, pilotos de navios bacalhoeiros, um capitão e poucos mais.
Pois, por volta de 1900, um sapateiro de profissão, com banca própria de conserto de sapatos, embora não sendo marítimo, mas com experiência de pesca lúdica, na costa e na barra do rio Douro, nomeadamente do robalo e do congro, além de saber manobrar um simples bote a remos e à vela, experiencia que nós aqui da Foz do Douro, mais propriamente os da borda d’água, desde rapazitos fomos habituados, o que não acontece hoje em dia, com tanta fiscalização e coimas, tornou-se pescador de dóri.
Acontece que aquele sapateiro, julgo de apelido Leite, e ainda meu parente materno, após as horas do seu trabalho oficinal, na venda da esquina, no meio de um jogo de cartas da sueca e de uns copos entre amigos, puxa conversa disto e daquilo, vem à baila a pesca do bacalhau, e o nosso Leite exclama, que apesar de ser uma faina bastante dura e longa, não temia fazer uma só campanha, como pescador de dóri, e que seria um “primeira linha”. E, dito isso, aposta aceite!
Como era Abril e os dias da largada dos lugres estavam próximos, o Leite não perdeu tempo, e a pé da Foz a Massarelos, foi falar com capitães, a fim de oferecer os seus préstimos como pescador, tendo sido aceite num dos vários lugres e como residisse perto, ficou estabelecido começar a trabalhar a bordo nos preparativos finais do navio e no amanho da sua embarcação de trabalho, a partir do dia seguinte. Tendo o capitão tratado da sua cédula marítima, a fim de o matricular na capitania do Porto e inscrevê-lo no respectivo rol da equipagem do seu lugre.
Chegado o dia da grande travessia do Atlântico, manhã cedo, o futuro “primeira linha” despediu-se sob choros, abraços e desejos de boa sorte, dos familiares e amigos e dos seus rivais apostadores e lá seguiu, pela estrada ribeirinha da Foz até Massarelos de saco de lona ao ombro e um razoável búzio na mão, arranjado à ultima hora, peça essa que lhe viria ser muito útil, buzinando para assinalar a posição do seu dóri em ocasiões de nevoeiros, e como temente a Deus que era, não deixou de passar pela igreja paroquial para orar à Senhora dos Navegantes, rogando protecção para a tarefa, que ia empreender, que para ele era coisa nova. Ao passar junto das capelas da Sra. da Lapa, Cantareira, patrona dos mareantes, dos pilotos da barra e dos pescadores da Foz do Douro; do Senhor dos Navegantes, Sobreiras; Senhor e Senhora da Ajuda, Santa Catarina e Senhora dos Anjos, Lordelo do Ouro, e ainda chegando junto do seu navio, a Massarelos, foi à igreja local ajoelhar-se diante da imagem de S. Pedro Telmo, em todas fazendo as mesmas preces. Já de véspera numa bateira da Cantareira, de um amigo, trouxera vários utensílios para o seu dóri, que estivera a preparar e ainda um garrafão de verde tinto, só para ser aberto em ocasiões festivas e um outro de pura aguardente, para combater os frios polares, oferecido por amigos.
E a hora da partida chegou! Catraia dos pilotos atracada ao lugre e piloto da barra a bordo. O capitão ordena a quem não era de bordo para ir para terra. Dóris do lugre trazem o pessoal para a lingueta e bateiras da Afurada, localidade piscatória ribeirinha de onde era a maior parte da tripulação, ficam a pairar nas imediações com mulheres e filhos. Na margem, como sempre acontece, familiares dos pescadores da Póvoa e da Vila, e gentes de Massarelos habituadas aqueles cenários de há muitos anos, acenam desejando boa viagem, boa pesca e feliz regresso.
O piloto da barra manda largar cabos de terra e os homens vão para o molinete para suspender as amarras. O “Veloz”, um rebocador de pás, pega a amarreta à proa e começa a desandar o navio para rumar à barra. No ancoradouro há outro lugre do mesmo armador a preparar-se para largar. O lugre, já de velas içadas e retesadas vai aproveitando a nortada que se faz sentir, passa diante do cais dos Pilotos e da Meia Laranja, à barra, e o nosso sapateiro/pescador corresponde aos acenos dos familiares e amigos, que não se cansam de lhe acenar. Já fora da barra o piloto despede-se do capitão, da tripulação e particularmente do novo “Herói do Mar”, sendo recolhido pela catraia e pouco depois o “Veloz” deixa o lugre à sua sorte, despedindo-se com silvos da sua sirene e o lugre toma o rumo do Noroeste do Atlântico, e muito possivelmente, o Leite, começa a sentir os efeitos da ondulação e do enjoo, que ele jamais tinha experimentado, porém agora é aguentar até regressar por Agosto.
Meados de Agosto, o telegrafista da estação semafórica e telegráfica do Monte da Luz, Foz do Douro, assinala lugre de três mastros a Oeste, e passada uma hora reconhece ser o lugre do pescador Sanjoaneiro, que se vai aproximando da costa. Entretanto os pilotos são informados, e em pouco tempo toda a Freguesia da S. João da Foz do Douro, avisada de boca em boca, já se dirige para os cais próximos da barra, para assistir à entrada do lugre e para saudar o sapateiro Leite,
O lugre já está pilotado, e a reboque do vapor “Liberal” faz-se à barra, e diante do cais do Touro, os familiares e amigos lá vislumbram o pescador Leite, apoiado nas enxárcias, de gorro na mão, acenando para terra, juntamente com os seus camaradas, que também acenam aos seus, que de seguida acompanham por terra o lugre até à amarração de Massarelos, ladeado por bateiras vindas da Afurada, também com gentes dos pescadores daquela localidade.
O novo “Herói do Mar”, após as formalidades legais e ter recebido os seus ganhos, despede-se dos camaradas e particularmente do seu capitão, que o felicita pela sua proeza e lhe recomenda que para a próxima campanha irá contar com ele. Só que o Leite diz-lhe que não foi feito para ser marinheiro, tem a sua oficina de sapateiro com uma boa clientela, e só foi pela aposta que embarcara. O capitão replica-lhe, que caso ele não apareça a bordo a tempo das matrículas, que o irá buscar a casa, que não estará disposto a perder um “primeira linha” como ele!
Já em terra é abraçado pelos familiares e amigos, que o felicitam pelo feito e mais o ovacionam e elevam-no aos ombros, quando lhes diz que fora o “primeira linha” do seu lugre, o que possivelmente não deve ter agradado aos seus amigos apostadores, que tiveram de arcar com o valor da aposta. Há noite na venda contava aos amigos as aventuras, porque passara nas duras e perigosas lides da sua “Faina Maior”. Mais tarde, quando da chegada de toda a frota bacalhoeira do armamento Portuense, foi divulgado que ele fora o pescador que mais quintais de bacalhau capturara, pelo que foi considerado o seu “primeiro pescador”.
E chegada a nova campanha do bacalhau, o capitão foi mesmo buscá-lo a casa para essa e para mais duas, tendo em todas elas cometido a proeza de ter sido o “primeira linha” do lugre.
A história acima narrada, e que eu compus o mais veridicamente possível, fora-me contada por meu Pai e velhos conterrâneos, na minha infância.