quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A ODISSEIA DE TRÊS NOVOS ATUNEIROS CHILENOS DIANTE DA COSTA NORTE DE PORUGAL, COM A PERDA DE UM DELES JUNTO À PRAIA DE PAMPELIDO EM 1966


Atuneiro DIEGO DE ALMARGO em experiências de mar na ria de Vigo // Publicação promocional dos ACSA / 


O atuneiro DIEGO DE ALMAGRO encalhado na costa da povoação de Pampelido / Jornal O Comércio do Porto /.


A balsa na qual a tripulação tentou o seu salvamento / Jornal O Comércio do Porto /.


Os quatro sobreviventes na enfermaria do Hospital de Matosinhos / Jornal O Comércio do Porto //


Os ASTILLEROS CONSTRUCCIONES SA, Vigo, no qual foram construídos os três atuneiros / Publicação promocional dos ACSA / 

Jornal “O Comércio do Porto” de 20/02/1966 - A cinquenta metros, se tanto, do local onde há cerca de vinte anos encalhou o paquete Brasileiro RUY BARBOSA, mais precisamente no mar de Geão, em Pampelido, registou-se nova tragédia marítima na madrugada de ontem, desta vez, infelizmente, assinalada com perda de vidas preciosas.
Pode afirmar-se, sem receio de exagerar, que as populações da praias de Pampelido, Angeiras e Vila Chã passaram uma noite de vigília torturante, pela incerteza das proporções duma tragédia que a minuto a minuto se vinha confirmando.
Nem o forte temporal que assolou toda a costa, com um vento de sudoeste fortíssimo, e de tal modo sibilante, que sufocava o marulhar tenebroso das águas barrentas do Atlântico, conseguiu afastar da costa desde Matosinhos até Vila do Conde, aquela gente rude, mas abnegada. Faziam-se as mais díspares afirmações sobre a sorte do navio desconhecido. Uns afirmavam tê-lo visto partido em dois e outros diziam tratar-se do encalhe de outros tantos navios tendo um deles tomado o rumo do oeste. Num vaivém quase constante, as ambulâncias de duas corporações de bombeiros, Leixões e Matosinhos-Leça dirigiam-se através de caminhos intransitáveis para as praias onde tinha sido visto a embarcação sinistrada. Colaborando com aqueles na praia de Vila Chã, o patrão Manuel Martins da Costa estava pronto com o seu salva-vidas a fazer-se ao oceano para tentar salvar os tripulantes do barco, que ele vira, ali, a dois passos, sem nada poder fazer. O mar, de vaga alta enroscante e assustadora, não permitia veleidade ao mais arrojado dos salvadores.
Na praia de Angeiras a vigilância da costa esteve entregue ao patrão Ezequiel Seabra, do salva-vidas local, um dos primeiros homens a dar o alarme de perigo que corria o barco e respectiva tripulação.
De todos estes esforços nada viria contudo a beneficiar a tripulação do barco atuneiro, que encalhou, pela proa, adornado sobre estibordo, um pouco depois das duas horas da madrugada, sobre os rochedos do mar Geão, precisamente a norte do monumento “Memória”, comemorativo do desembarque de D. Pedro IV do regresso do Brasil. Salvaram-se os que se salvaram, pelos seus próprios recursos e após luta titânica, que durou horas infindáveis para os naufragados, com o oceano.
DE VIGO A LEIXÕES EM QUATRO DIAS, DEBAIXO DE VIOLENTA TEMPESTADE
Com rumo ao Chile e escala por Lisboa e Las Palmas, partiram no passado dia 14, três barcos atuneiros, construídos recentemente por um estaleiro da ria de Vigo e que se destinavam à empresa Chilena Gusmayo. Eram eles o DIEGO DE ALMAGRO, PEDRO DE VALDIVIA e CRISTÓBAL COLÓN, de 197trb cada um, aqueles barcos pesqueiros, que mais parecem de recreio, afiguram-se-nos não dar garantias de uma viagem tranquila para mais nesta estação do ano, através do Atlântico.
Navegam distanciados uns dos outros aproximadamente uma milha náutica. Nos primeiros dias, nada de anormal se registou, apesar do andamento ser muito moderado, consequência da forte agitação do mar, que viria a causar os seus malefícios.
De verdade o DIEGO DE ALMARGO, não resistindo a tanta fúria das águas oceânicas, sofreu anteontem, avaria na máquina pelo que parou ao largo, aguardando o romper do dia para, depois poder demandar com mais segurança um dos portos da nossa costa. Os outros atuneiros, entretanto, conhecedores da avaria não se afastaram nunca do local onde o barco sinistrado permanecia ao sabor das ondas, que o viriam a atirar para os rochedos, primeiro da praia de Angeiras, depois da de Vila Chã, e, finalmente de Pampelido.
O pescador Amândio de Jesus Sousa, afirmou-nos ter visto dois homens na ponte do comando do atuneiro DIEGO DE ALMAGRO, quando este foi atirado para os rochedos situados muito perto do areal. O barco tocou a sirene continuamente para em seguida, acender uma luz vermelha. Deu imediatamente o alarme para Leixões, donde já tinham partido a corporação local com uma ambulância e um carro de socorros a náufragos, e a de Matosinhos-Leça com uma ambulância. Por sua vez, os Bombeiros de Vila do Conde também se dirigiram para o local com uma ambulância e um pronto-socorro, os da Póvoa com um pronto-socorro e os Voluntários do Porto com uma ambulância e um carro lança-cabos. Todas estas corporações, no entanto, não chegaram a trabalhar, pelo que regressaram pelas cinco horas aos seus quartéis.
O MAR DEU Á COSTA UMA BALSA NA PRAIA DE ANGEIRAS, PRIMEIRA CERTEZA DA TRAGÉDIA
Os numerosos pescadores que ao longo do areal da praia de Angeiras procuravam descobrir, a olho nu, o DIEGO DE ALMAGRO, foram alertados por um estrondo enorme junto de um dos rochedos, que o mar, deixa emergir na vazante.
Pressurosos se dirigiram ao local para depararem com uma balsa de cortiça e borracha, em forma diagonal, com três metros de comprimento.
Procuraram descobrir qualquer sinal que pudesse identificar o navio em perigo, mas foi em vão.
O aparecimento da balsa só serviu para confirmar a tragédia. O facto foi imediatamente participado às autoridades, que passaram a redobrar os seus esforços para a localização do barco.
Seriam contudo, quatro horas da madrugada, quando bateram fortemente à porta do sr. David Pereira Ramos, motorista, morador na rua nº 1, em Pampelido. O seu cunhado a residir também no mesmo prédio, sr. António Ramos da Silva, decidiu descer ao rés-do-chão para ver quem estava àquela hora a acordá-los.
E foi com espanto, e não sem um pouco de receio, que deparou com dois jovens, um seminu e outro com um colete de salvação, tiritando de frio, mal podendo articular as palavras com que pretendiam identificar-se e pedir socorro. Apercebendo-se que, certamente se trataria de uma tragédia marítima, imediatamente lhes franqueou as portas. Passados dois escassos minutos, mais dois jovens lhes batiam à porta, portadores também de coletes de salvação.
A esposa do sr. António Ramos e seu irmão que, entretanto, já tinham descido ao rés-do-chão, trataram desde logo de socorrer os náufragos que, com insistência pediam agasalhos, calçado e bebidas que os reanimassem.
Após terem recebido os primeiros socorros dois deles contaram a odisseia de que tinham sido vitimas, para depois solicitarem que os acompanhassem à praia, a fim de procurarem os seus colegas, que se fizeram com eles ao mar na mesma balsa. Para lá partiram, então percorrendo toda a costa até ao posto da guarda-fiscal, onde viriam a encontrar o capitão do porto de Leixões, sr. Comandante Soares Barbosa e o dos bombeiros da mesma vila. Dirigiram-se de novo à praia, a fim de localizarem onde o atuneiro estava encalhado muito perto do areal. Daqui seguiram para a residência do sr. David Pereira Ramos, onde estavam ainda os outros dois náufragos, tendo sido, depois transportados numa ambulância dos Bombeiros de Matosinhos-Leça para o hospital de Matosinhos.
Revelou-nos o sr. David Pereira Ramos, que os náufragos permaneceram na sua residência duas horas e que o seu vizinho, sr. Albino Silva Santos, também socorrera os sobreviventes para o que oferecera várias peças de vestuário e calçado.
UM DOS NAUFRAGOS RELATA A LUTA QUE TRAVARAM CONTRA A MORTE
Os quatro tripulantes salvos, foram recolhidos na enfermaria nº 6 do Hospital de Matosinhos.
Quando lá chegamos, duas horas depois do internamento, deparamos com os quatro sobreviventes já bastante recompostos. Só um deles, no entanto, apresentava melhor disposição para descrever todo o drama que viveram e a que só eles assistiram.
Foi o 2º motorista José Martinez Trelles, casado, de 34 anos, natural de Meira, Moaña, Vigo. Tem dois filhos. No seu rosto deixava transparecer toda a tragedia vivida. Espalhadas pela cama, encontravam-se várias fotografias e pesetas.
Apercebendo-se das nossas intenções, imediatamente se pôs ao nosso dispor. Perguntamos-lhe qual a razão por que não pediram pela telefonia socorros!
- Da primeira vez que nos encontramos perto de terra e em perigo e quando fazíamos silvar a sirene, o barco foi atingido por um violento golpe de mar que nos cortou a energia eléctrica. Ficamos, assim perdidos, numa situação alarmante. Só nos restava o recurso de duas balsas que tínhamos a bordo.
- Foi com elas que se salvaram?
- Sim, foi na verdade com elas que nos salvamos e outros tantos companheiros nossos desapareceram. A primeira que lançamos ao mar foi envolvida no turbilhão das águas, desaparecendo.
Na segunda, para onde entrou toda a tripulação, composta por oito homens, conseguimo-nos manter cerca de duas horas. Foram duas horas de incerteza nos nossos destinos. Valeu-nos muito o remo que trouxemos de bordo e umas garrafas de whisky, que deu alento perante a desgraça que víamos à nossa frente sob violento temporal, com vento fortíssimo e a chuva e a água gelada do oceano a fustigar-nos.

- Mas chegaram com a balsa a terra?
- Infelizmente não. Se assim tivesse sucedido, por certo que nos salvaríamos todos. Fomos envolvidos numa vaga alterosa que nos fez perder a balsa e a vida de quatro companheiros.
- Quanto tempo estiveram dentro de água após a perda da balsa?
- Cerca de meia hora.  Mal chegamos a terra, a nossa preocupação foi protegermo-nos do vento cortante que se fazia sentir. Deparamos no alto da praia com um monumento: Para lá nos dirigimos. Ali nos abrigamos durante algum tempo, até que nos metemos por uma rua à procura de alguém que nos prestasse os primeiros socorros.
- E quanto aos seus companheiros desaparecidos? Indagamos ainda.
- Deles nada sei. Infelizmente. Três estavam equipados com coletes de salvação. Mas de nada lhes valeram. Desapareceram mesmo enfrente do monumento. E ali – e apontava com um dedo – que eles devem aparecer. Quando caíamos à água só ouvi gritos.
Os outros sobreviventes: são Augusto Tagle Lorrain, solteiro de 21 anos, técnico de barcos, natural de Santiago do Chile, que se deslocara a Espanha pela primeira vez em serviço da empresa armadora dos três atuneiros; Veríssimo Moreira Gago, casado de 28 anos, motorista, morador na avenida Atlântico, 8-3º, em Vigo; e o timoneiro do barco, Juan Veja Gonzalez, solteiro de 29 anos, natural de Iquique, Chile.
O estado de qualquer deles não é de cuidados. Pelas 8 horas da manhã, de ontem, o sr. cônsul de Espanha, no Porto, deslocou-se ao Hospital de Matosinhos, a fim de se certificar do estado dos seus compatriotas. Prometeu-lhes, depois pôr-se em contacto com as suas famílias, a fim de lhes comunicar que se encontravam sãos e salvos.
OS QUATRO DESAPARECIDOS
Como já referimos, a tripulação do barco era composta por oito homens que lutaram juntos, praticamente, até à consumação da tragédia. O mar tragou impiedosamente as suas vidas, levando a dor e o luto a duas famílias viguesas e outras tantas do Chile. Eis as suas identidades: capitão Gustavo Sofia Alvarez, casado, de 38 anos, de Santiago do Chile; André S. Pedro, casado de 35 anos, de Santa Eugénia, de Ribeiro, ao norte de Vigo; Afonso Silva, casado de 36 anos, cozinheiro, natural de Vigo, e Milénk Malinario, solteiro de 27 anos, 1º piloto, natural de Iquique, Chile.
Os outros dois atuneiros rumaram a Vigo.
Uma vez consumada a tragédia do DIEGO DE ALMARGO, urgia socorrer os outros barcos que o acompanhavam e de cujo paradeiro se desconhecia em absoluto.
Os esforças feitos pelas autoridades marítimas, não foram, todavia, coroadas de êxito, dado que não conseguiram localizá-los.
A tempestade que se fez sentir, com o agravamento, no oceano, foi o pior dos obstáculos com que se depararam todas as embarcações de socorro que saíram ou tentaram sair para o mar.
Assim o rebocador MONTE CRASTO, dos primeiros a fazer-se ao largo para servir de apoio ao salva-vidas CARVALHO ARAÚJO, que depois da possível permanência na costa foi obrigado a regressar ao porto de Leixões. O mesmo viria, também, a suceder com a vedeta NRP DOURADA, que sob a direcção do sr. comandante Pires de Matos, procurou, mas não pode prosseguir nas suas pesquisas.
Só por volta das 12 horas de ontem é que o capitão do porto de Leixões, sr. comandante Soares Barbosa, conseguiu entrar em contacto, pela telefonia, com o CRISTOBAL COLÓN e o PEDRO DE VALDIVIA, que não sabiam indicar, contudo, a sua localização.
Por outro lado, informaram ainda, o capitão do porto de Leixões que o último daqueles atuneiros andava à deriva devido a avaria.
Em face das informações colhidas, o sr. comandante Soares Barbosa ordenou a saída do arrastão costeiro ATREVIDO,  que está equipado com radiogoniómetro. De nada valeu também esta tentativa.
Por uma última informação foi-nos participado que os barcos tinham tomado o rumo de Vigo. Mas seria possível? Sim, seria possível tal decisão se atentarmos bem no facto das mesmas embarcações terem demorado de Vigo até perto de Leixões quatro dias? Desta vez tinham com eles, e a seu favor, uma vaga predominante de Nordeste e vento sudoeste muito rijo, ou seja o inverso das condições atmosféricas e marítimas encontradas na viagem para sul.

Vigo 20/02/1966 – Toda a costa Galega sofre as consequências do temporal. Numerosos navios mercantes e de pesca têm fundeado na ria de Vigo, à espera que chegue a bonança para se fazerem ao Atlântico. As docas de Berbés abrigam a quase totalidade da frota pesqueira que se viu forçada a arribar devido ao mau tempo.
O paquete espanhol BEGOÑA, da Compañia Transatlantica Española, que esta manhã chegou dos portos da Venezuela e Colômbia, traz as suas estruturas com sinais da terrível ondulação que suportou durante os últimos dias de navegação. Os seus tripulantes, os mais antigos, confessaram que nunca haviam visto uma situação de mar tão complicada.
Ao meio-dia chegaram ao porto de Vigo rebocados pelo arrastão costeiro Português FÃO, que os encontrou à deriva diante de Vila Praia de Ancora, os atuneiros PEDRO DE VALDIVIA e CRISTOBAL COLÓN, e os dois ficaram atracados no molhe Transversal. O primeiro traz o leme e o hélice danificados e uma amolgadura na proa, e todo o costado de bombordo cheio de raspagens na pintura, e ambos estão com problemas graves de máquina.
O capitão José Alonso, responsável pela viagem dos três atuneiros, está numa clinica médica a receber tratamento, porque estava com os nervos descontrolados.
O desaparecimento do DIEGO DE ALMARGO se há convertido numa tragédia desta viagem inicial dos três atuneiros Chilenos. Mas poderia ter sido pior, sem deixar alguém para contar.
Atuneiros congeladores destinados à pesca de cerco por “Power Black” do tipo “ACSA-25”, DE 197 t.r.b., carga de pescado fresco (anchova) de 170 tons ou de 70 tons de atum congelado. Propulsionados por motor diesel de 600 bhp a 575 rpm com reductor 2/1, entregues pelos Astilleros Construcciones SA, Vigo em 11/1965 à SA Pesquera Guanaye, Santiago do Chile.

NOTA DO AUTOR: Não sou marítimo, mas também não sou nenhum leigo, e em minha opinião, antes dos três atuneiros largarem do porto de Vigo, olhando a que eram embarcações de pequeno porte, os responsáveis pela longa viagem, deviam inteirar-se das condições atmosféricas, possivelmente o terão feito, ou então quando começaram a sentir a aproximação da borrasca, fazerem-se ao largo, longe da costa, ou ainda como tinham mar e vento de feição correrem ao tempo, e arribarem à ria de Vigo, na qual teriam grandes possibilidades de a demandar sem muitas dificuldades. A Galiza na ocasião não foi poupada a outros acidentes, note-se que a ria e porto de Vigo estavam cheios de embarcações fugidas ao mau tempo,
Quantas embarcações não conseguindo entrar no porto de Leixões, e debaixo de mau tempo, corriam ao tempo, e demandavam o porto de Vigo, ou em alternativa faziam-se ao largo, o mais longe da costa, que era o caso das traineiras Galegas, que em tempos idos fainavam na nossa costa, e era muitíssimo raro arribarem a portos Portugueses.
Fontes: jornal “O Comércio do Porto”; La Vanguardia.com - Hemeroteca; ABC – Hemeroteca; Astilleros Construcciones SA, Vigo.
Rui Amaro

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