Rebocador MARIALVA saindo a barra do Douro, finais da década de 40 / colecção F. Cabral /.
Destroços das embarcações naufragadas que deram à costa entre Lavadores e Espinho / Imprensa diária /.
08/12/1959 - Sob
um temporal desfeito, do quadrante noroeste, mar muito agitado e vaga alta, navegavam ao largo da
barra do Douro, o rebocador MARIALVA, com o mestre Júlio Fernandes Parracho a
orientar a manobra de navegação. Dava reboque à fragata CANTANHEDE, que
transportava 9.200 sacos de cimento, e á MICAELENSE, que trazia 380 toneladas
de sal. Procediam de Setúbal, tendo deixado aquele porto pelo entardecer de
sexta-feira, com destino à barra do Douro, onde eram esperados, muito embora
ali não pudessem entrar devido à barra se encontrar encerrada à navegação pela
forte agitação do mar e corrente de água do rio.
Ao princípio da madrugada de ontem, deviam pairar em
frente à capelinha do Senhor da Pedra, entre as praias de Miramar e Francelos,
talvez um pouco descaídos a terra. É local bastante perigoso para a navegação,
visto localizarem-se naquela zona os “Roncadores”, formando um fundo de pedra
que se estende pelo mar dentro. Açoitadas terrivelmente pela procela, o
MARIALVA, certamente com toda a potência da sua máquina, procurava atingir com
as duas embarcações que rebocava o porto de Leixões, ali tão próximo, que seria
afinal, o seu porto de salvamento dado o caso de, porventura, ali chegar…
Uma tragédia marítima estava prestes a desenrolar-se –
rápida e fulminante – tão rápida que de bordo do rebocador, presume-se que não
tivessem tempo de comunicar pela fonia a sua terrível situação, lançando um
S.O.S. e, em poucos minutos, no meio daquele mar tenebroso, soçobraram o
MARIALVA, a CANTANHEDE e a MICAELENSE, tragando as águas revoltas os dezassete
homens que faziam as tripulações. Simplesmente dramático. Nem um único
sobrevivente para relatar a fatídica tragédia.
O mestre do MARIALVA, Júlio Fernandes Parracho, de 57
anos, oriundo da Nazaré, e residente na rua Dois Amigos, em Leça da Palmeira,
experimentado homem do mar, que há mais de vinte anos se entregava ao serviço
de reboques na zona costeira, sabia bem a situação em que se encontrava o seu
rebocador e as fragatas que conduzia. Pelos seus próprios recursos procurava
safar-se de tão crítica posição, mantendo-se em comunicação durante a noite com
os postos rádio costeiros. Numa transmissão com o navio-tanque SHELL ONZE, que
viera a Leixões descarregar combustíveis líquidos, anunciava que estava a ser
batido por voltas de mar alterosas e uma delas ter-lhe-ia apagado uma das bocas-de-fogo
da caldeira!
Na gíria marítima teria um desabafo: - “O mar era um cão;
entretanto, procuraria alcançar Leixões…”. E chegaria a pedir alerta aos
pilotos para uma ajuda de entrada. Foram estas efémeras informações colhidas
pela reportagem, na ronda de se desvendar um pouco da verdade sobre o dramático
acontecimento marítimo. Se tivessem lançado um S.O.S. teriam talvez aqueles
homens possibilidade de salvamento. Com aquele mar tenebroso – afirmaram-nos os
práticos – não haveria meios eficazes de socorro, mesmo na hipótese da utilização
de um helicóptero, se isso fosse possível, seria viável o salvamento dos
náufragos, de noite, e com a vaga impetuosa a varrer a costa, a crescer ao
longe, e ao largo.
No rondar dos ponteiros, a marcar o início da madrugada,
deixou de ouvir-se a fonia do MARIALVA. De Leixões, a partir do dealbar, não se
avistavam as três embarcações. Algo, ocorrera naquela avassalante noite de tragédia.
A gente do mar, sempre em sobressalto com os prenúncios do mau tempo, receava o
pior. Na realidade, alguns lares estavam de luto.
Os postos rádio costeiros estiveram em comunicação com os
navios-motor ingleses MERCIAN e LUCIAN, que pairavam ao largo da costa. Os
respectivos comandantes, em resposta, transmitiram que nada haviam encontrado
nas imediações da área. A fatídica notícia do afundamento do rebocador e das
fragatas confirmava-se pelos telefonemas, que cerca das oito horas de ontem
começaram a chegar â capitania do Douro e à Corporação dos Pilotos. Diziam os
informadores que estavam a ser arremetidos à terra os restos do costado dum
navio.
O aparecimento destes destroços alertou as autoridades
marítimas. Ao longo do litoral, entre as praias de Lavadores e da Aguda, o mar
arrojava para o areal pedaços da fragata MICAELENSE, construída em madeira, e
que fora completamente despedaçada. À praia de Francelos veio dar a maior parte
do cavername daquela embarcação. Uma das baleeiras do MARIALVA também ficou
varada na areia.
Entre os destroços que os cabos de mar recolhiam e
procuravam identificar, encontravam-se coletes de salvação, boias da MICALENSE
e da CANTANHEDE… Alguns dos coletes vinham com nós dados, pelo que tudo indica,
que tivessem sido utilizados pelos náufragos!
O rebocador MARIALVA e a fragata CANTANHEDE, devido à sua
construção ser em ferro, afundaram-se sem que fossem desmantelados pelo mar.
Aquele rebocador – que ultimamente recebera grandes reparações – saíra pela
última vez da barra do Douro em 10 de Novembro findo, levando a fragata COSTA
NOVA, rumo a sul.
O afundamento das três embarcações devia ter-se
desenrolado por volta da uma hora da madrugada; e assim se deduz pela falta de
contacto, por meio da fonia de bordo, do MARIALVA, a partir mais ou menos
daquele momento, com a navegação e postos costeiros. Como referimos, nenhum dos
tripulantes conseguira sobreviver à lancinante tragédia.
Da tripulação do MARIALVA faziam parte, além do mestre
Sr. Júlio Fernandes Parracho, domiciliado em Leça da Palmeira, os Srs. João
Francisco dos Reis, de 40 anos, contra-mestre, do Algarve; Adolfo Américo da
Costa, de 60 anos, maquinista, de Alfândega da Fé; Emídio Francisco dos Santos,
de 49 anos, residente no bairro da Condominhas, Porto, e José da Silva
Monteiro, de Canidelo, V. N. de Gaia, ambos fogueiros; António Joaquim da Silva
Duarte, de 30 anos, chegador, de Canidelo, V. N. de Gaia; Joaquim Martins dos
Santos, de 27 anos, de Alcochete, e Francisco Conceição Felício, marinheiros; e
Lázaro Esteves, de 23 anos, moço de bordo, da Murtosa.
Segundo consta do rebocador, houve um tripulante que por
qualquer motivo não embarcara na fatídica viagem, e graças a isso teve a grande
felicidade de continuar vivo por muitos anos.
Da fragata CANTANHEDE, era mestre há seis anos, o
marítimo Domingos dos Santos Caturra, de 56 anos, residente nas escadas da Boa
Passagem, em V. N. de Gaia, junto ao rio; e tripulantes, os marinheiros
Alexandre Duarte Silva, de 49 anos, de Lisboa, e Manuel Joaquim Damiães, de 27
anos, de Alcochete; e ainda Francisco Maria Enguião, de 19 anos, de Ovar, moço.
Da fragata MICAELENSE, Francisco de Oliveira Enguião, de
57 anos, de Ovar, mestre; Joaquim Viegas Lameiro, de 38 anos, de Olhão, e
António José dos Santos, marinheiros; e como moço embarcara José Luis Reis.
As famílias dos náufragos residentes no Porto, ao saberem
do acontecimento, fizeram-se deslocar às proximidades do sítio onde se produziu
o trágico sinistro, na ansia de encontrar os corpos dos seus entes queridos. A
costa continuava a ser fustigada pelo temporal.
Entre as tripulações dos três barcos afundados, alguns
são familiares. O fogueiro do MARIALVA, José da Silva Monteiro, era tio do
chegador António Joaquim da Silva Duarte. O mestre da MICAELENSE, Francisco da
Silva Enguião era também parente do moço da CANTANHEDE Francisco Maria Enguião.
Alguns desses homens de mar serviam há muitos anos nas embarcações que se
afundaram. O mais antigo era o mestre do rebocador.
Dos dezassete náufragos, só o corpo de um deles, pelas 11
horas foi arrojado à praia, perto de Miramar. Vinha completamente nu. Mais
tarde foi identificado pela família. Tratava-se do mestre da CANTANHEDE, que
foi piedosamente recolhido. Os Bombeiros Voluntários da Aguda, durante o dia e
parte da noite de ontem, numa ronda permanente, procuraram localizar mais
alguns corpos. Entretanto entre as praias de Francelos e de Espinho, não houve notícias
de algum outro aparecimento.
Recorde-se uma tragédia semelhante ocorrida em março de 1954,
ao largo do mar de Aveiro, em circunstâncias que não foi possível averiguar
concretamente, soçobraram o rebocador NEIVA e a fragata que conduzia, a
FIGUEIRA DA FOZ, que se empregavam também no tráfego costeiro, e seguiam na
rota de Setúbal para o Douro, perecendo as duas tripulações. Curiosamente o
rebocador MARIALVA, que de Setúbal vinha em viagem também para o Douro, sem
qualquer fragata a reboque, alguns dias depois do desastre, viu-se envolvido
nas buscas, e avisado pelo arrastão Espanhol RAPOLA, que avistara uma
baleeira à deriva, e aparentemente sem sobreviventes, apressadamente dirigiu-se
às coordenadas indicadas pelo RAPOLA, e encontrou a baleeira com o corpo do
moço da fragata FIGUEIRA DA FOZ, que segundo parece havia sucumbido poucas
horas antes, e que recolhido veio para o Douro, mal sabia o mestre Júlio
Fernandes Parracho, que cerca de cinco anos depois, teria o mesmo infortúnio
das tripulações do MARIALVA, CANTANHEDE e MICAELENSE.
As embarcações que ora se perderam pertenciam à empresa
armadora Sofamar – Sociedade de Fainas de Mar e Rio, Sarl, de Lisboa, e vinham
consignadas ao agente no Porto, Almeida & Santos, Lda. A carga de cimento
transportada a bordo da CANTANHEDE no valor de 270 contos, destinava-se à firma
Costa Lima, Lda, e a carga de sal, no valor de 150 contos da fragata
MICAELENSE, pertencia á firma Maia & Ferreira Leite, ambas do Porto. Tanto
as cargas como as embarcações encontravam-se a coberto das respectivas
companhias seguradoras.
E Leixões encontrava-se à vista, relativamente a escassas
milhas, a pouco mais de uma hora de viagem, com o farol da Boa Nova a indicar o
norte, fazendo refulgir, no horizonte marítimo, os seus “relâmpagos” luminosos,
naquela noite avassalante, em que perderam a vida dezassete homens de mar.
O comodoro Quintanilha de Mendonça Dias, titular da pasta
da marinha, estabeleceu contacto com a capitania do porto do Douro,
interessando-se vivamente pela trágica ocorrência, e nomeando o capitão do
porto para o representar nos funerais das vítimas.
As autoridades marítimas também tomaram contacto com o sucedido
às duas fragatas e ao rebocador e às suas tripulações.
Segundo relato de um amigo, já falecido, que foi amador
do mergulho, e já esteve dentro da casa do leme da fragata CANTANHEDE, que à
altura se encontrava já alquebrada e com fortes amolgadelas no costado avante e
a bombordo, a cerca de três milhas náuticas para oeste do enfiamento da barra
do Douro e à volta de 27 metros de profundidade.
Dada as ditas amolgadelas no costado, posssivelmente
ter-se-ia rebentado as repectivas amarretas, leva-nos a pensar que o rebocador
tentou, apesar da forte ondulação de mau tempo, acostar à CANTANHEDE para
recolher a tripulação, e a mesma operação em relação à MICAELENSE, a fim de se
libertar dos rebocados, porque o mestre do rebocador para se safar, jamais deve
abandonar a tripulação do rebocado à sua sorte, porque ficam à deriva, a não
ser que façam uso dos ferros, que em certas condiçoes de temporal nem sempre
dão o resultado desejado, indo de garra. Também terá havido a possibilidade,
uma vez que o MARIALVA estava a ser batido por vagas alterosas, ter sido
apanhado por alguma volta de mar descomunal, que lhe tenha desfeito a casa do
leme, ou inundado a casa da máquina e as caldeiras, apagando o fogo das
respectivas fornalhas, ficando sem meios de comunicação e indo à deriva colidir
com a fragata CANTANHEDE, cujo casco era de ferro.
O rebocador ANTÓNIO FERRO no dia do bota-abaixo no estaleiro H. Parry & Sons, Ginjal. Não faltavam operários, completamente diferente da actualidade, que há quem só queira despedir trabalhadores e acabar com a construção naval, e ainda há entidades responsáveis que afirmam que Portugal é um país virado para o mar. Já foi há muitos anos!
Imagem amavelmente enviada por Nuno Bartolomeu, Almada.
MARIALVA – 26,10m/ 110,99tb/ 9,5nós; 1937 construido por H. Parry & Sons, Lda, Ginjal, como ANTONIO FERRO para ??; 06/02/1946 MARIALVA, Pascoais Unidos, Lda, Porto (sede social Matosinhos); 1959 MARIALVA, Sofamar – Sociedade de Fainas de Mar e Rio, Sarl., Lisboa.
CANTANHEDE – 40m/ 286,42tb; 1915 construído por Schiffswerft
Oderwerk A/G, Stettin, Alemanha; 1946 CANTANHEDE, Pascoais Unidos, Lda., Porto
(sede social Matosinhos); 1959 CANTANHEDE, Sofamar – Sociedade de Fainas de Mar e Rio,
Sarl., Lisboa; 4 tripulantes.
MICAELENSE – 31,15m/ 222,98tb; 19__ construída por ??; 19__
MICAELENSE, Companhia de Navegação Carregadores Açoreanos, Ponta Delgada,
gestores David José de Pinho & Fos, Porto; 1943 MICAELENSE, reconstruída
por José da Silva Lapa, V. N. de Gaia; 1959 CANTANHEDE, Sofamar – Sociedade de
Fainas de Mar e Rio, Sarl., Lisboa; 4 tripulantes.
Fontes: Imprensa diária da cidade do Porto; Reinaldo Delgado.
Fontes: Imprensa diária da cidade do Porto; Reinaldo Delgado.
Rui Amaro
ATENÇÃO: Se houver alguém que se ache com direitos sobre
as imagens postadas neste blogue, deve-o comunicar de imediato. a fim da(s)
mesma(s) ser(em) retirada(s), o que será uma pena, contudo rogo a sua
compreensão e autorização para a continuação da(s) mesma(s) em NAVIOS Á VISTA,
o que muito se agradece.
ATTENTION. If there is anyone who thinks they have
“copyrights” of any images/photos posted on this blog, should contact me
immediately, in order I remove them, but will be sadness. However I
appeal for your comprehension and authorizing the continuation of the same on
NAVIOS Á VISTA, which will be very much appreciated.