sábado, 1 de junho de 2013

A DRAMÁTICA TRAGÉDIA DO VAPOR DE PESCA “AÇOR” NA COSTA DO CABO RASO

O AÇOR como NRP AÇOR / desenho de Luis Filipe Silva - Forum Defesa /.


 Um aspecto do trágico desembarque dos mortos em Cascais, que foram recolhidos pelo vapor dos pilotos / Jornal O Comércio do Porto /.


 Os destroços da popa do AÇOR / Jornal O Comércio do Porto /.


 A proa do AÇORES emergindo das águas traiçoeiras / Jornal O Comércio do Porto /.




vapor de pesca por arrasto AÇOR /Autor desconhecido /.

09/02/1954 - Tudo era negrume na cerração daquela noite de temporal desfeito, noite de 
tempestade em que o bramir do mar tinha uivos de fera sedenta de sangue e no assobiar vergastante do vento passavam ríspidos silvos que mais pareciam gritos de morte a acompanhar o ritmo descompassado ferino, do mar revolto e de alterosas vagas.
Naquele constante revolutear de ondas, naquele vento desaustinado para o qual o mar imenso parecia pequeno e limitado campo de acção, naquele nevoeiro denso e pastoso, havia qualquer coisa de temerosa visão apocalíptica a sacudir as almas e os corpos. E o mar, o mar imenso, devia meter pavor, aterrorizar até mesmo aqueles que nasceram embalados nas suas fúrias. Mas a vida, com as constantes preocupações de pão de cada dia também tem as suas exigências e tantas que às vezes impõe a morte.
Por isso o AÇOR, um velho barco de pesca pertencente à Companhia Portuguesa de Pesca, depois de ter estado arribado em Cascais para fugir ao temporal que havia “lá fora”, durante algumas horas teve de se fazer ao mar. Desde o cair da noite de domingo, que o arrastão fundeara na baía de Cascais.
Às 04h30 de ontem, noite cerrada, ainda longe do lusco-fusco o AÇOR suspendeu e fez-se ao mar.
Logo a tripulação se viu diante da tempestade. Por isso, havia algum nevoeiro que no dizer de um dos sobreviventes permitia, no entanto, se pudesse navegar.
Quando o barco chegou pouco antes do Cabo Raso, o comandante do AÇOR, o capitão Armindo Machado deu ordem para o timoneiro se chegar mais a terra. Aquele deve porém ter exagerado demais a manobra.
O pessoal do farol do Cabo Raso, viu a imprevidência da manobra e pretendeu de todo modo evitar o desastre.
Assim os Srs. Luis Fernandes, faroleiro chefe, e Carlos Duarte de Miranda, homem de serviço aos sinais abriram o sinal sonoro, que fez ouvir à distância os seus estridentes silvos. Do vapor deviam ter ouvido os sinais, que se prolongaram por sete minutos, porque a sirene de bordo correspondeu. Mas a marcha do barco continuava a fazer-se na mesma direcção, sem que houvesse possibilidade de ser detida, por parte do pessoal do farol, que se limitava a insistir nos sinais. O barco marchava cada vez mais junto aos rochedos, e ante tal o pessoal do farol passou a ter o desastre como inevitável.
O EMBATE COM OS ROCHEDOS
Pouco passava das 05h00 quando com um estrondo seco, mas forte o barco encalhou nas pedras.
Os sinais sonoros continuaram como gritos angustiantes quer do farol quer do AÇOR. Mas a sereia deste pouco a pouco foi perdendo a força, sinal de  que se ia esgotando o vapor das caldeiras do AÇOR.
Foi nesta altura que a Sra. D. Fernanda Santos do Cabo, filha do falecido faroleiro João do Cabo, proprietária dum restaurante junto à costa, em Cabo Raso, acordou com o som desesperado dos apitos de sirene. Da janela do seu quarto viu a menos de cinquenta metros junto à costa a silhueta dum navio que lhe parecia envolto num clarão produzido decerto pelas luzes de bordo na negrura do nevoeiro, e isto porque parece não ter havido nenhuma explosão. Não teve dúvidas, porém de que estava a assistir a um naufrágio.
Imediatamente reuniu todo o pessoal que tinha em casa e dirigiu-se para o local.
Pouco passava das 05h30 e começa o dia a romper, embora a custo. O espectáculo que se lhe deparou era indescritível  A cerca de 50 metros da costa estava um barco já partido em dois, e fortemente batido pela ondulação. Neste momento o AÇOR ainda não se afundara completamente e a Sra. D. Fernanda do Cabo pode ver na ponte do comando oito homens, que ao avistarem-na e às pessoas que a acompanhavam na praia, gritaram-lhe alucinadamente – camaradas, salvem-nos. Salvem-nos.
Aquela senhora contou ainda que, em cima duma embarcação, um rapaz alto e forte porta-se como um herói, ajudando os seus camaradas dando a mão aos mais fracos, agarrando aqueles que estavam prestes a sucumbir, a todos incutindo coragem.
UM DOS SOBREVIVENTES DESCREVE A TRAGÉDIA
Foi então que o barco adornou para o lado do mar, fazendo desaparecer no seio das ondas os homens que nele se mantinham e que no final era o resto da tripulação que toda pereceu no naufrágio à excepção de dois: o heroico Máximo dos Ramos e Joaquim da Silva Caseiro, que aquele salvou sustentando-o durante muito tempo nos braços.
Foi de resto o Máximo que mais tarde no Hospital da Misericórdia de Cascais pôde reconstituir a tragédia, contando:
- Foi uma grande desgraça.
E com a voz embargada:
- Vi-os afogarem-se, morrerem quase todos a meu lado. Outros, embora tentando aguentarem-se, sucumbiram ao frio, porque a água estava gelada e o Máximo, simplesmente, com autentica simplicidade dos heróis conta a sua odisseia.
- Assim que se deu o choque contra a penedia lancei-me à água com outros companheiros e, todos agarramo-nos à quilha do bote que se tinha voltado. O pobre do capitão que tinha 70 anos, ficou imobilizado na ponte de comando. Era um velho homem e de nada servia lançar-se ao mar. Foi para o fundo com os restos do navio.
Quando interrompendo, a sua descrição, falaram ao ousado rapaz da sua acção decidida e heroica, o Máximo com a serenidade natural dos homens bons e como que espantado que os outros se admirassem limitou-se a comentar:
- Só os ajudei. Então eu havia de deixá-los morrer? Mas, infelizmente, não tive mão para todos. Ajudei o Joaquim, que já estava meio morto, mas os outros, coitados, lá ficaram. Isto acontece a gente que anda no mar.
A DEMORA NA PRESTAÇÃO DE AUXÍLIOS FOI A CAUSA DE SE REGISTAREM TANTOS MORTOS
Agora um outro aspecto da desgraça que não pode deixar de ser posto à ponderação de quem de direito:
Logo que se apercebeu do naufrágio, a Sra. D. Fernanda Santos do Cabo deu conta do desastre para os Bombeiros Voluntários de Cascais. Estes imediatamente telefonaram para a Estação de Socorros a Náufragos de Paço de Arcos, partindo acto continuo para o local da tragédia onde chegaram pouco antes das 06h00, mas sem coisa alguma poderem fazer, embora a essa hora ainda fosse possível o lançamento de um cabo de vaivém, pois grande parte dos homens ainda se encontravam sobre as águas e uns oito gritavam por socorro na ponte. Depois o barco adornou e eles desapareceram todos no mar.
E tal aconteceu porque os Bombeiros Voluntários de Cascais não possuem material de socorros a náufragos, pois este foi-lhes retirado há cerca de 5 anos para ser transferido para o posto de socorros a náufragos de Paço de Arcos cujo material, ontem, não chegou ao Cabo Raso, às 08h30. Quando a tragédia já se tinha completamente consumada sem que os Bombeiros Voluntários de Cascais pudessem fazer o quer que fosse.
Os chefes destes declararam que o que ontem aconteceu era de há muito esperado, devido á falta de material de socorros a náufragos.
No entanto, esta não é a opinião do sr. Comandante Sá Viana Couceiro, inspector de socorros a náufragos, que falando aos representantes da imprensa, declarou:
- Infelizmente, foi a rapidez com que se desenrolou a tragédia que não permitiu mais eficazes. A tripulação do salva-vidas PATRÃO JOAQUIM LOPES, pôs o barco em movimento a caminho do Cabo Raso, imediatamente após a recepção do pedido de assistência, quando era 05h45. Simplesmente é preciso pensar nas milhas a percorrer desde Paço de Arcos até ao Cabo Raso. Por um barco que não é, positivamente um contratorpedeiro. Apesar disso ainda mandei sair um segundo salva-vidas, o ALMIRANTE GAGO COUTINHO – mas como se sabe, além de dois homens vivos, já não foi possível recolher senão cadáveres.
E como lhe falassem na hipótese de socorrer por terra, aquele oficial afirmou:
As circunstâncias em que se deu o sinistro e o local tornavam-nos inviáveis. O barco bateu longe das rochas, galgou-as, veio depois a rolar e acabou por cair – já ferido de morte – num fundo próximo dos rochedos da costa. O navio alquebrou e voltou-se. Desta maneira, se se lançassem de terra cordas para os náufragos estes viriam a morrer ao chegarem junto à extensa orla rochosa onde as vagas se desfazem com certa violência.
Ante a hipótese da instalação dum cabo de vaivém, o sr. comandante Couceiro explicou aos jornalistas.
- È impossível estabelecer um cabo de vaivém quando, no mar, não existe um poste de apoio. Isso é viável e resulta perfeitamente quando se trata de um navio encalhado, mas que resiste ao embate do mar. È impraticável quando barco sinistrado se quebra ao meio e cada uma das duas metades não permite que esteja alguém sobre os destroços.
Não tenhamos duvidas: a rapidez da tragédia, as circunstancias em que se deu e o local que lhe serviu de cenário, foram as verdadeiras causas dessas dezasseis vidas.
Da mesma opinião é o sr. Tenente Gomes Ferreira, delegado marítimo de Cascais que também disse não ser possível o estabelecimento de um cabo de vaivém por carência de um ponto estável no barco naufragado.
Assim sendo mesmo o que parece indispensável é a existência de socorros a náufragos em Cascais, ponto da costa, onde com frequência se verificam desastres.
Os dois sobreviventes Máximo Ramos Inácio e Joaquim da Silva Caseiro, continuam internados no Hospital da Misericórdia de Cascais considerando-se o seu estado satisfatório.
OS MORTOS E DESAPARECIDOS
È seguinte a lista dos mortos e desaparecidos no trágico naufrágio:
Capitão Armindo Augusto Machado, de 70 anos; encarregado de pesca José Maria de Matos Lamarão, de 30 anos; contramestre Augusto Tobias dos Anjos, de 29 anos; mestre redes António Lázaro Babou, de 55 anos; pescadores: Manuel de Jesus Bizarro, 43 anos, Manuel Diogo dos Santos, 22 anos, Joaquim Alves, 59 anos, Manuel Marques Picoito, 28 anos; 1º maquinista António Pereira Júnior, 61 anos, 2º maquinista Eduardo Brito Júnior, 56 anos; fogueiros: Francisco Augusto Gonçalves, 59 anos, Francisco Donato, 59 anos, Carlos Lopes Marçal, 56 anos; chegadores: Arnaldo Brás da Costa, 41 anos, António Eusébio, 41 anos; cozinheiro Horácio do Sacramento Fernandes, 24 anos. Os dois sobreviventes são como acima se disse, os pescadores Joaquim da Silva Caseiro, 28 anos e Máximo Ramos Inácio, 26 anos.
Ontem de manhã, logo que tiveram conhecimento da tragédia, seguiram para a praia do Guincho, os srs. Comandante Henrique Tenreiro, delegado do governo junto dos organismos das pescas; Comodoro Duarte Silva, delegado adjunto, e Júlio da Rocha Borges, director da Grémio dos Armadores da Pesca do Arrasto.
O RELATÓRIO SOBRE O NAUFRÁGIO
O sr. Comandante Santiago de Ponce, da Policia Marítima de Lisboa, entregou ontem, pela manhã, ao sr. Almirante Francisco Fialho, o relatório acerca do desastre do AÇOR mandado fazer pelo sr. Ministro da Marinha. Aquele documento não contém elementos novos além daqueles que desde o dia da tragédia vêm sendo tornados público pela imprensa. Chega-se também à conclusão de que não houve nenhuma espécie de responsabilidade e muito menos negligência quer por parte dos Bombeiros quer do pessoal de socorros a náufragos ou dos pilotos da barra, mas que apenas se verificaram atrasos na chamada dos socorros justificados, aliás, pela desorientação provocada pela rapidez com que a tragédia se desenrolou em circunstâncias bem extraordinárias.
O velho barco de pesca, ao que se provou, navegava demasiado encostado à terra, o que constituiu uma temeridade do comandante que, pelo visto, confiava demais na sua experiencia e não admitia que a idade – cerca de 70 anos – já não lhe permitisse enfrentar, corajosamente, algum perigo que surgisse. E é tanto assim, que, ao que parece, ao verificar a impossibilidade da luta o capitão do AÇOR se fechou no seu camarote quando o barco logo ao primeiro embate com as rochas abriu água e ficou inundado o que impediu aos tripulantes acorressem aos locais onde estavam os cintos de salvação.
Ainda pelo relatório se verifica que o pessoal do farol do Cabo Raso ao avistar o navio abriu todos os sinais sonoros para chamar a atenção do comandante sem o conseguir, visto o barco continuar a seguir em direcção às rochas, tornando o encalhe inevitável. Este foi poucos minutos depois participado aos bombeiros de Cascais pelo faroleiro e restante pessoal do farol. Quando devia antes ter feito esta comunicação à Rádio Naval de Cascais que por seu turno lançaria o alarme para o vapor dos pilotos e pediria outros meios de socorro e isto por, como se sabe, os bombeiros de Cascais não possuírem material de socorros a náufragos: tal facto, porém, longe de constituir negligência, tem ao contrário a justificação a atrapalhação provocada pela ânsia de chamarem socorros.
Os bombeiros de Cascais, por seu turno, comunicaram a notícia aos de Paço de Arcos e aos Socorros a Náufragos ao que evidentemente se perdeu tempo, neste caso precioso. O vapor dos pilotos só uma hora depois pela Rádio Naval de Cascais teve conhecimento do desastre. Como aquela embarcação nem sempre tem as caldeiras em pressão foi preciso elevá-las no que se gastou cerca de 40 minutos e só depois pode fazer rumo ao local da tragédia. Ainda pode, no entanto, apesar de todo este atraso, recolher os dois sobreviventes que se debatiam com as ondas.
Em relação aos bombeiros de Paço de Arcos o relatório regista que a ocorrência se deu de madrugada quando no quartel só estava o piquete e, por isso, houve necessidade de chamar pessoal que embora residindo perto ainda levou algum tempo a comparecer no local da ocorrência, e, mesmo assim, conduzindo um cabo de vaivém, o único material de que dispõe o que já não seria aproveitável dado as proporções que o naufrágio tinha tomado.
O relatório provou, pois, que não houve qualquer espécie de negligência mas ao mesmo tempo tacitamente salientou a falta que faz um posto de socorros a náufragos em Cascais.
ALGUNS DEPOIMENTOS
Por parte das autoridades marítimas, dos dirigentes do Grémio dos Armadores da Pesca do Arrasto e da Companhia Portuguesa de Pesca, proprietária do AÇOR, foram Já ouvidos sobre as possíveis causas do naufrágio, os dois pescadores sobreviventes, o faroleiro do Cabo Raso e outras pessoas que assistiram à tragédia.
Segundo alguns entendidos das coisas da navegação marítima, pode concluir-se que houve excesso de confiança por parte do capitão Armindo Machado e do pessoal da ponte, do AÇOR. Essa confiança é tradicional, porquanto os marítimos, especialmente os dos barcos de pesca, fixam um ponto de referência a fim de seguirem para os locais da faina, escolhendo de preferência o rumo mais próximo da costa.
Pelos depoimentos dos mesmos entendidos, há ainda neste caso, a averiguar, se for possível consegui-lo, o uso que foi dado à sonda, para determinar se o barco poderia sem perigo navegar tão próximo dos rochedos onde se despedaçou.
AÇOR - imo 1123371/ 37,48m/ 244tb/ 9nós; 12/1906 entregue por John Duthie Torry Shipbuilding Co., Ltd, Aberdeen, como LOCH TORRIDON à White Star Steam Fishing Co., Ltd, Aberdeen; 1914  AÇOR, Sociedade Portuguesa de Pescarias, Lda, Lisboa; 1916 NRP AÇOR, requisitado pela Marinha de Guerra Portuguesa para servir como caça-minas; 1920 AÇOR, Empresa Portuguesa de Pescarias, Lda, Lisboa, 07/1922 afundou-se e mais tarde posto a flutuar; 1926 AÇOR, Companhia Portuguesa de Pesca, Sarl, Lisboa; 08/02/1954 naufragou na costa do Cabo Raso.
Fontes: Jornal O Comercio do Porto e O Primeiro de Janeiro, Bosun’s Watch site, Forum Defesa.
Rui Amaro
 
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