A PRAIA DA ATALAIA navegando na ria de Aveiro
26/11/1963 – O Jornal de
Noticias descrevia assim a dantesca tragédia, segundo o seu correspondente em
Aveiro.
È de 28 o número de mortos da
tragédia ocorrida na barra de Aveiro no passado dia 24, um domingo.
Apenas uma pessoa pode contar
como aconteceu, em todos os pormenores, o dramático naufrágio ocorrido ao fim
da tarde de anteontem, à saída da barra do porto de Aveiro e já na margem
exterior do molhe norte. Ninguém mais! – Incluindo o próprio e único
sobrevivente da tragédia, que, por a ter vivido tão de perto e sob a ameaça da
morte. Não poderia. Por motivos óbvios, presenciá-la!...
Com efeito, foi apenas o
faroleiro então de serviço no farol da barra de Aveiro – e que por mero acaso
acabara de subir ao alto da torre de 61 metros (a mais alta do País em
instalações do género) – a única testemunha presencial do trágico naufrágio, em
que terão perdido a vida. Em escassos segundos 28 homens, numero aliás sem
confirmação oficial.
O Jornal de Noticias acorreu,
pois, a ouvir esta testemunha – e o sr. Luis Peixoto da Silva Sameiro, 2º
faroleiro, que há 45 anos nasceu ali mesmo, nas instalações residenciais do
farol, onde hoje exerce a sua actividade profissional, como já a haviam
exercido seu avô e seu pai!
O sr. Luis Peixoto da Silva
Sameiro, acedendo sem rodeios, e antes com muita e cativante amabilidade ao
nosso pedido, contou-nos como assistiu amargurado e impotente para valer aos
seus semelhantes – a todos os pormenores da dramática ocorrência. E assim nos
possibilitou, em exclusivo, um novo e emocionante “capítulo” da história da
duríssima e traiçoeira vida dos nossos pescadores!
Um “capítulo” mais, que
consternou o país inteiro e cobriu de luto a laboriosa classe piscatória
nacional, e dezenas de famílias, de bem modestos recursos económicos (na sua maioria,
pelo menos), que, de sopro, ficaram privadas dos seus chefes - mulheres sem
maridos, filhos sem pais, irmãs sem irmãos – e que ontem igualmente fomos
surpreender em certas das zonas habitacionais da cidade Aveirense, onde
tradicionalmente residem os pescadores e a sua numerosa gente!
Aliás, acentuou-se também, a
dor da tremenda catástrofe (a maior que se terá registado de há muitos anos
naquela zona da nossa costa) caiu e sentiu-se profundamente em toda a cidade de
Aveiro, que fomos encontrar como que espantada e incrédula, das proporções
profundamente angustiosas de que o desastre se revestiu. E como, já a certa
altura da manhã de ontem, começou a correr ali a notícia de que afinal o número
de vítimas não era tão elevado, como em princípio fora anunciado, raiou ainda
uma esperança nos corações dos mais optimistas. Mas, infelizmente, e não
obstante ter havido, de facto, algum exagero, aliás natural, nesse primeiro número
anunciado, e verdade é que o apurado agora, já sem erro superior à unidade, é
ainda deveras alto para que deixe de dar á tragédia a lastimável classificação
de catástrofe – e de carregar pesado luto à grande e heroica classe piscatória
Portuguesa, em geral, e a Aveirense e Algarvia em particular, Algarvia sim,
repetimos, pois entre ao que foram tragados pelo mar ou ficaram
irremediavelmente enclausurados no bojo da traineira PRAIA DA ATLAIA, eram
muitos (e até dos mais responsáveis pelo governo da frágil embarcação, como o
mestre e o contramestre) os naturais de freguesias do extremo sul de Portugal,
que também aí residiam com as suas famílias. Que em Aveiro, afinal, apenas
tinham o seu bem duro e ingrato como traiçoeiro ganha-pão de cada dia!
Morreram precisamente, uns e
outros, quando iam em busca ansiosa, e fremente de valentia, sem receio do mar
tenebroso (antes certos de que o dominariam como noutras ocasiões, remotas e
próximas); quando iam, dizíamos, ganhar esse pão honrado para um novo dia, que
seria o seguinte ao daquele fim de tarde de anteontem – um domingo! Lá iam eles
em busca do trabalho, de difícil trabalho de galgar as ondas do mar, e de
recolher do seu seio o peixe que viria a proporcionar-lhes, a todos, os
rendimentos económicos indispensáveis à sua sobrevivência e à dos seus.
Era um domingo. Mas os
pescadores não têm domingos; ou raras vezes os gozam, ainda mesmo que só já ao
fim da tarde, como na ocorrência em causa se verificou, venham a sair para o
mar. E sempre, quaisquer que sejam as condições do estado de tempo e da
ondulação, para correrem o risco da perda preciosa da vida. Que o mar,
capricha, quando menos deixa prever, em causar, em causar vitimas entre os que
não o temem, nem jamais o temeram – mesmo quando os exemplos como os de agora,
não de moldes a amedrontar os espíritos mais afoitos e ricos de valentia!
Foi pois num domingo;
anteontem, até ao fim da tarde, que a dramática e tenebrosa ocorrência começou
a desenvolver-se, e os homens da tripulação da traineira PRAIA DA ATALAIA
iniciaram a sua louca corrida para a morte, que já os enfeitiçava, e os
aguardava (certa de ganhar tais “presas” de vidas preciosas) lá fora, mesmo à
saída da barra, junto ao pontão do molhe norte do porto de Aveiro. E já
portanto, quando os homens, cientes da sua ciência, estavam a poucas milhas do
limite da perigosa sena da rebentação, e prestes s atingirem, consequentemente,
a zona onde esperavam (como coisa certa) “cavar” o pão do seu sustento e dos
seus!
A TRAINEIRA SINISTRADA SAIU DA “LOTA” CERCA DAS 16 HORAS E A CANINHO DA
BARRA O MESTRE FOI ACONSELHADO (POR PALAVRAS E EXEMPLOS) A RENUNCIAR AO RUMO DO
MAR…
O mestre da embarcação, da
frágil e até então bem capaz e venturosa embarcação, marcara concentração dos
tripulantes (motorista, ajudantes e camaradas) para as 14 horas, com a
tolerância de uma hora para os retardatários. Estava ainda, a PRAIA DA ATALAIA
ancorada na doca da lota do Peixe, como habitualmente.
Durante esse período de tempo,
previsto para se completar a equipagem, foram ali aparecendo alguns, - mas
poucos, pois só verdadeiramente nos cinco minutos finais desse período, veio a
verificar-se uma chegada em massa de quase todos…
Feita a chamada, porém,
verificava-se ainda a falta de alguns… Mas o caso não surpreendeu, nem o mestre
nem os camaradas. A estes muito menos! É que - a avaliar pelo que foi dado a
saber em certos meios piscatórios de Aveiro – desde há uns tempos para cá, que
muitos destes não se sentiam tranquilos com as atitudes de comando do mestre,
ora demasiadamente aventureiro, ora escandalosamente descuidado, ora
inexplicavelmente conflituoso e servindo-lhe para tais manifestações o mais
pequeno caso…Não se admiraram pois, repetimos, os presentes á chamada pela
falta de nada menos de uns oito ou nove colegas de trabalho. E entre os quais,
se achava até o próprio filho do contramestre! Se até esse faltara à chamada,
porque não haviam de faltar os restantes?
Contados e recontados, pelo
responsável da respectiva e obrigatória chamada do pessoal, eram29 (ou 28,
número a confirmar pelas autoridades oficiais, talvez ainda hoje mesmo) os
presentes. O que terá levado o mestre a comentar, com a rudeza (e também a pura
franqueza) dos “valentes homens do mar”: Eu sozinho não tenho medo!...
Sorriam-se todos quantos o
ouviram. Sorriso levemente esboçado, que gente daquele duro mister, não sente
muita vontade de rir quando a hora da faina se aproxima. Todos os seus sentidos
levam ao pensamento nos entes queridos que acabaram de deixar em suas casas,
com um breve beijo ou um simples aceno de até breve…
Entretanto, concluíam-se os preparativos
para a traineira deixar o ancoradouro. E cerca das 16 horas com efeito, já a
PRAIA DA ATALAIA navegava, preguiçosamente, ou como quem procura poupar
energias para a dura “batalha” que se lhe reservava, lá no alto-mar (e com que
todos ao seus tripulantes já sonhavam, cheios de fé numa rica maré) – o
objectivo final do rumo que lhe dava o “homem do leme”.
No seu posto, hirto como uma
rocha, olhar atento à ria cujas águas, algo agitadas por forte vento de
nordeste, e que a PRAIA DA ATALAIA continuava a cortar em marcha assaz
moderada; no seu posto, dizíamos, de cachimbo a pender dos lábios grossos e
gretados, o mestre Romeu de Brito Bernardino, rijo homem da costa Algarvia,
terá sido surpreendido, a certa altura, numa demorada observação do céu,
carregado de nuvens tremendamente negras que corriam ainda a altas velocidades,
que lhes eram impostas por verdadeiro vendaval… Mas nem um músculo do seu rosto
rugoso, se contraiu… Estava decidido – iria para o mar! Já a meio do caminho do
ancoradouro donde partira e a barra que pretendia demandar, a PRAIA DA ATALAIA
recebeu um aviso: o primeiro de outros mais que lhe seriam transmitidos sobre a
conveniência de renunciar ao rumo que lhe era ordenado pelo mestre.
A JOSEFA VILARINHO demandando o porto de Leixões, a qual algum tempo mais tarde se afundou ao largo da costa, tendo toda a equipagem sido salva.
Vinha ele de bordo da
traineira DIVOR, que tem por mestre outro bom marinheiro do Algarve – o mestre
Artur, bem conhecido e admirado entre todos os pescadores com quem tem privado.
Mas não teve qualquer efeito, tal propósito. Como também não teriam, exactamente,
os que se lhe seguiram; da traineira VILA DE ILHAVO, que tem por mestre
Baptista; da traineira RUI CARLOS, do mestre Viegas e ainda da traineira S.
REMO, do mestre José Pata. Assinale-se, antes do mais, a curiosa circunstancia,
de todos estes mestres serem igualmente Algarvios, e portanto conterrâneos do responsável
pelo governo da PRAIA DA ATALAIA, o que porém, se mantinha na sua: - “Não são
homens do mar, não são nada. Têm medo! Uma tempestadezinha de quase todos os
dias. Quem não vence um temporal destes, seria melhor que ficasse em casa!”
Aconteceu, então, que também
outra embarcação veio a seguir na esteira daquela – como se o seu mestre tivesse
escutado as afirmações e comentários do vigoroso e teimoso homem do comando da
PRAIA DA ATALAIA. Era a traineira JOSEFA VILARINHO – respondendo ao desafio…
Ambas apontadas à barra,
temerosamente, sem que lhe provocasse complicações a agitação tremenda que se
lhes patenteava o mar. À frente, a PRAIA DA ATALAIA; na sua esteira, a JOSEFA
VILARINHO, numa renúncia previdente, ficaram como as demais que constituíam a
frota pesqueira de cerco Aveirense, seguramente abrigadas na lota.
Tudo aconteceu num ápice!
Precisamente à saída, sem que de princípio compreendessem o que se passava, os
homens da JOSEFA VILARINHO viram a PRAIA DA ATALAIA ser erguida como se fosse
leve pena arremessada à distância! Depois, tudo foi depressa também, Ouviram-se
alguns gritos e viu-se a traineira, cair, mas tombada, de modo a que uma outra
volta de mar, igual à que a fizera erguer-se, e envolvesse totalmente,
levando-a para o fundo.
E nada pode fazer a JOSEFA
VILARINHO. Aproximar-se da traineira naufragada era impossível e homens à tona
de água não os havia em posição de serem socorridos. Assim, apenas lhe coube a
triste missão de dar a notícia daquela desgraça através da fonia para o posto
de rádio Aveiro-Pesca, ao mesmo tempo que o seu mestre mandava retroceder para
abrigo seguro. Não era positivo vencer aquele mar.
UM ÚNICO SOBREVIVENTE ARREMESSADO PARA UM PENEDO
De toda a tripulação – que não
se sabe ao certo se era constituída por 27 ou 28 homens – havia apenas um único
sobrevivente. Quando o mar levantou pela segunda vez a traineira e a voltou, o
camarada Pedro da Conceição Júnior, natural de Lagos, sentiu-se projectado e,
providencialmente, foi cair sobre um penedo a que se agarrou firmemente – com
mãos de afogado. Quando lhe puderam valer, era ele o único sobrevivente daquela
tragédia. Todos os colegas tinham ido para o fundo. Muitos vira ele adebaterem-se sem lhes poder dar o mais ligeiro auxílio.
Como o Pedro da Conceição
tinha alguns ferimentos, levaram-no para a Casa de Saúde de Vera Cruz.
Dois outros homens se salvaram
mas esses porque chegaram tarde ao embarque ou simplesmente, decidiram não se
meter naquela aventura. Com efeito, os pescadores Manuel Brás Belchior e Manuel
de Matos, ambos de Olhão, devem a esse facto estarem hoje vivos. Juntamente
porque alguns outros da tripulação efectiva da PRAIA DA ATALAIA não tenham
também embarcado é que se mantém a dúvida sobre o número exacto das vítimas do
naufrágio.
Até à noite. Não tinha
aparecido um só corpo das vítimas. Avistou-se apenas a embarcação um pouco a
norte do molhe Norte, estando já decidido fazer-se uma tentativa para a
recuperar.
A COMPANHA DA PRAIA DA ATALAIA
Sujeita a confirmação, a lista
dos que perderam a vida no naufrágio é a seguinte:
Mestre Romeu Brito Bernardino,
de Albufeira; contramestre António Gonçalves Serrenho, de Portimão; motorista
Florentino Ferreira Cardoso, da Gafanha da Nazaré; ajudantes de motorista
Alberto Marques Cordeiro, da Gafanha da Nazaré, e Augusto Santos Neto, da
Figueira da Foz; pescadores: Domingos da Rosa Alambre e Emídio da Silva
Gravato, ambos de Aveiro; Carlos Alberto Ribeiro Alcaide, Herminio da Silva
Caçoilo, Francisco Graça Basílio e Fernando dos Santos, todos de Olhão; Carlos
Teixeira Mariano, de Lisboa; Celestino Francisco Patarra, José Salvador da
Costa, Manuel Oliveira Pinto, Manuel Salvador, Manuel Domingos Magano, António
Gabriel Miranda Oliveira, Manuel Francisco Calisto, Armindo dos Santos, António
Faustino Pereira Rocha, Manuel Maria da Silva, de Aveiro; Plares da Encarnação
Serrenho, de Portimão; José Vicente Matoso, de Lagos; José Domingos Lima Ramos,
da Fuzeta; João Simões Basílio, de Aveiro; António Gonçalves Serrenho e Joaquim
dos Santos Soares, de Portimão.
O que restava da PRAIA DA ATALAIA era apenas o que a imagem mostra
FOI UM ESPECTÁCULO TREMENDO, MEDONHO!
FOI A MAIOR TRAGÉDIA DO MAR A QUE ATÉ HOJE ASSISTI!
CHOREI DE RAIVA POR NÃO LHES PODER VALER!
PALAVRAS DO FAROLEIRO QUE TUDO PRESENCIOU DO CIMO DO FAROL DE AVEIRO
Da reconstituição deste emocionante
“capítulo” da história da vida e da morte dos pescadores Portugueses na sua
heroica e dura luta com o mar, que vai seguir-se, será desde agora o nosso
precioso “guia” (como já havíamos revelado) a única testemunha presencial de
toda a tragédia gerada, aliás, em escassos minutos, e consumada ainda em
simples e muito mais escassos segundos. Num sopro! Num sopro, como que apaga a
simples chamazinha de uma vela!
O sr. Luis Peixoto da Silva Sameiro, 2º faroleiro do farol costa de Aveiro, vai
ter pois a palavra, na quase totalidade deste capítulo final…
Trata-se, aliás, - será
conveniente dizê-lo, até pelo ensejo que se nos oferece de referir um aspecto
deveras invulgar e curioso na vida deste dedicado “homem do mar” – de um
condigno descendente da gloriosa e honrosa “família de faroleiros”, com
inestimáveis provas dadas de competência e de inexcedível dedicação ao serviço
que sempre prestaram e professaram, como ele agora, de alma e coração, mais
ainda do que proventos (bem parcos claro) de que precisam para fazer as
necessidades da vida económica do dia-a-dia.
Mas era tempo de ouvirmos a
descrição da tragedia. A que só ele assistira, da qual só ele poderia relatar,
em todos os pormenores, como ninguém.
“Foi um espectáculo medonho.
Tremendo! Foi a maior tragédia no mar a que até hoje assisti! E para mais sem
lhes poder valer, não pode fazer outra coisa além de dar o alarme, e de gritar
aos infelizes náufragos, que tivessem fé! Eles nem me ouviram; não me podiam
ouvir, nem tempo tiveram para isso…Angustiado chorei de raiva! Tudo se passou
em segundos e de tal forma espantosa, que hoje, já tenho perguntado a mim mesmo
se não terei sonhado. Se não se terá passado assim, tal como vi lá do alto,
desta torre de farol de 61 metros!
ÁS 16 HORAS E 50 MINUTOS – RUMO DA MORTE TRAIÇOEIRA…
Visivelmente emocionado,
ainda, pois, o sr. Luis Peixoto da Silva Sameiro, começou a sua revelação em
primeira mão!
Faltariam uns 15 minutos para
as 17 horas, quando na minha habitual ronda de inspecção cheguei ao último
pavimento do farol. A noite estava prestes a cair, envolvendo terra e mar de negrume.
E às 17 horas e 20 minutos teria de acender o farol, de harmonia com o horário
que me é imposto no exercício das minhas funções, por quem de direito,
Pela vigia, os meus primeiros
olhares foram para o mar… Nessa altura, como sempre… É natural, acontece-me
sempre assim – e julgo mesmo que não poderia ser de oura maneira, ainda que me
empenhasse em contrariar o hábito…
Primeiro fitei-me na linha do
horizonte; depois, sim observando o mar, de vagas de espantosas ameaças, até à
costa e aos molhes que formam o enfiamento da entrada da barra…E fiquei profundamente
alarmado e sobressaltado, com o espectáculo que junto ao molhe Norte, ainda na
parte interior mas já a dois passos do respectivo pontão extremo, então se me
ofereceu, e me fez tremer de receio pela vida de tantos homens.
A vaga era medonha, a
rebentação parecia que ia levar as rochas de vencida… Dois pontos, balançavam
como cascas de nós, ali, naquele sector do molhe Norte. À frente a traineira
PRAIA DA ATALAIA, já mesmo na altura de ser conduzida para sair a barra, porque
o momento favorável se oferecia-lhe a tal manobra, aliás arriscadíssima. Mais
atrás e mais abrigada do mar e do vento a traineira JOSEFA VILARINHO.
Dez minutos se passaram; dez
minutos que se pareceram séculos…Os meus olhos eram pequenos para não perder o
mais pequeno movimento da frágil embarcação… E entretanto, muitas vezes me
interroguei, sobre a temeridade de uma tentativa daquele género. Cheguei mesmo
a duvidar, de que o experimentado mestre insistisse na verdadeira aventura
cheia de riscos!
EM CINCO MINUTOS SE GEROU A TRAGÉDIA!
EM ESCASSOS SEGUNDOS SE CONSUMOU, SEM DAR TEMPO A UM AI!...
Em breve me apercebi de que,
afinal o mestre da PRAIA DA ATALAIA teimava na sua ousadia de desafiar as procelas;
e só aguardava que “houvesse aliso” para navegar barra fora, contornando a
ponta do molhe, na manobra tradicional, mas que sempre se faz sem quaisquer
perigos com o mar habitual. Mas naquele mar!... Foram cinco minutos de arrasante
expectativa – até que (demorara, mas ali estava o momento aguardado) no mar da
traineira se deu o aliso, que o mestre, numa hábil manobra de quem sabe o que
faz e o que quer, aproveitou, medindo a saída, e executando-a de maneira a
contornar o pontão do molhe, tal como já havia dito.
E é que o contornou,
realmente. Mas logo se veio a declarar, sem dar tempo, a um suspiro de
reflexão, uma vaga enorme, como poucas eu terei visto em toda a minha vida de
homen do mar. E o barco (num espectáculo também raro para mim) ficou de repente
todo coberto de água, assim desaparecendo por instantes da minha visão...
Parte dos destroços da PRAIA DA ATALAIA varados na praia
O MESTRE RECONHECEU O ERRO, QUIS REGRESSAR À BARRA, MAS A MANOBRA DE
INVERSÃO NÃO RESULTOU; E FOI O FIM!...
Só nessa altura – estou certo
disso, a avaliar pelo que observei – o mestre da traineira se terá capacitado
da temeridade insólita de que se revestia o seu propósito. Mas já seria tarde,
ou ter-se-ão verificado anomalias de que não cheguei nem poderia aperceber-me
do meu posto.
Talvez já ferido – em consequência
da primeira vaga, que cobrira o barco – o mestre Romeu de Brito Bernardino terá
ordenado a manobra de inversão. Mas, como disse, por estar ferido, não ter sido
presto na ordem. Ou - quem sabe? – Por que também o motorista tivesse ficado
impossibilitado de actuar na plenitude das suas faculdades, quando da primeira
vaga. Isto é; por qualquer anormalidade, a verdade (e isto verifiquei eu, muito
bem) é que uma requerida manobra de inversão foi executada muito lentamente. E
a consequência imediata, foi que o barco logo fustigado por nova tremenda volta
de mar, veio a ganhar uma inclinação de 45 graus – que era bem o principio do
fim… E o princípio aconteceu com a traineira em posição paralela á terra (e já mais
distante do pontão do molhe a que o mestre pretendera já regressar) sofreu o
impacto da vaga fatal.
O que então se passou, não
posso contar-lhe exactamente, meu amigo, pois não encontro palavras para tanto!
Foi tremendo, espantosamente tremendo o que vi – e nunca julguei que fosse possível
acontecer. Um brinquedo, a traineira carregada de preciosas vidas humanas,
transformada num verdadeiro brinquedo nas mãos poderosas do mar – voltara-se em
dois segundos sem deixar tempo para soltar um ai… e ficar de quilha para o ar,
ao sabor das vagas, como animal profundamente ferido de morte… Gritei, dei o
alarme para o salva-vidas tão depressa quanto me foi possível. Como corri!...
Quando regressei à vigia do
farol, lá no alto, as vagas continuavam a brincar, insaciáveis com a embarcação
de quilha para o ar… E iam arrastando-a a pouco e pouco, mais para norte da
praia e cada vez mais para junto da praia… Lá por baixo, eu pressentia os últimos
estretores da embarcação perdendo a chaminé, desfazendo-se aos poucos pelos
embates que incessantemente sofria no leito rochoso do mar… Chorei de raiva!
Chorei de angústia! Os homens do mar, não deviam morrer assim! Não, jamais
esquecerei esses últimos e trágicos minutos da vida de tantos pescadores,
amortalhados no seu barco em que trabalhavam por bem merecer o pão de cada dia.
Assim terminou o sr. Luis
Peixoto da Silva Sameiro, o primeiro relato concreto, objectivo e válido por
resultar da observação directa e integral
da tragédia, que se publica na imprensa sobre o dramático naufrágio da
traineira PRAIA DA ATALAIA, à saída do molhe norte da barra de Aveiro, num
domingo, dia 24 último, ao fim da tarde – sob grande temporal!
NOVE TRIPULANTES SALVARAM-SE POR NÃO TEREM EMBARCADO
A tripulação efectiva da traineira
PRAIA DA ATALAIA era de 28 homens – segundo a mais recente documentação da
respectiva matrícula nos Serviços da Capitania do Porto de Aveiro. Nove deles
porém não responderam à chamada até ao momento da largada da PRAIA DA ATALAIA,
que assim veio a deixar o seu ancoradouro, para o trágico fim que já a
espreitava somente com 29 tripulantes a bordo e dos quais - como já foi
noticiado – apenas consegui-o salvar-se (em circunstancias consideradas como
fruto de verdadeiro milagre) o pescador Pedro da Conceição Guerreiro, de 24
anos, solteiro, de Lagos, residente em Silves, onde também vivem seus pais.
PROVIDENCIAS PARA REMEDIAR A SITUAÇÃO EM QUE FICAM AS FAMILIAS DA
VITIMAS
No foguete da tarde, vindo de
Lisboa, chegou a Aveiro, o sr. Guilherme de Sousa Salgado, presidente do Grémio
e da Mutua dos Armadores da Pesca da Sardinha, que veio inteirar-se do naufrágio
da PRAIA DA ATALAIA e inquirir da situação das famílias dos pescadores para
providencias a tomar quanto ao auxílio a prestar-lhes.
O sr. Almirante Henrique
Tenreiro, incumbiu-se de lhe comunicar detalhadamente as conclusões a que
chegar para, por sua vez, tomar quanto ao auxílio a prestar-lhes.
Entre outros benefícios, cada
agregado familiar deve receber um subsídio de 5 mil escudos, além do valor
individual. Por outro lado, a Mutua adiantará as importâncias das pensões a que
têm direito as viúvas ou outros parentes dos falecidos.
A tragédia que enlutou a
classe piscatória de Portugal, sobretudo a região de Aveiro, a qual se vestiu
de luto, com bandeiras nacionais e de muitas colectividades a meia haste.
Fonte e imagens do Jornal de
Noticias, do Porto.
Rui Amaro
ATTENTION.
If there is anyone who thinks they have “copyrights” of any images/photos
posted on this blog, should contact me immediately, in order I remove them, but
will be sadness. However I appeal for your comprehension and authorizing the
continuation of the same on NAVIOS Á VISTA, which will be very much
appreciated.
ATENÇÃO: Se
houver alguém que se ache com direitos sobre as imagens postadas
neste blogue,
deve-o comunicar de imediato. a fim da(s) mesma(s) ser(em) retirada(s), o que
será uma pena, contudo rogo a sua compreensão e autorização para a continuação
da(s) mesma(s) em NAVIOS Á VISTA, o que muito se agradece.
grande