Desde
1852, quando se deu o naufrágio do vapor PORTO depois de demandar a barra do
Douro, no qual pareceram cerca de duzentas pessoas, e da tragédia de
27 de Fevereiro de 1892, assim recordada, em que perderam a vida 105 humildes
pescadores da Póvoa de Varzim e da Afurada, que não se registava, na costa
marítima, de Portugal, um desastre que causasse tanta emoção como o naufrágio
do VERONESE em 1913. Este paquete de linha Inglês, conduzia a bordo – segundo
as melhores informações – duzentas vinte e uma pessoas entre passageiros e
tripulantes.
O
naufrágio deu-se às 4 horas da madrugada de 16 de Janeiro de 1913, ou seja há
100 anos. O vapor que fazia a aproximação ao porto de Leixões com chuva e como
tal alguma neblina, embateu na pedra denominada “Lenho”, vindo a encalhar sobre
a penedia, a pouca distância a norte da capela da Boa Nova, em Leça da
Palmeira. A noite era de temporal desfeito, o mar rugia, embravecido, e, as
ondas, altas como torres, cobriam o horizonte e galgavam os molhes do porto de
Leixões, desfazendo-se em espuma nos areais próximos.
Note-se
que à época não existiam os dois faróis de sinalização da costa no lugar da Boa
Nova, tendo mais tarde havido outros dois naufrágios nas imediações, dos
vapores BOGOR e SILURIAN, tendo, do primeiro parecido 33 tripulantes dos 38 do
seu lotameto. As únicas luzes de referência para os mareantes, que então
existiam eram o farol da Sra. da Luz, e os farolins da barra do Douro e dos
molhes de Leixões.
Durante
três dias, centenas de pessoas, indiferentes ao frio e à chuva, mantiveram-se
no local do naufrágio, colaborando com os bombeiros e pessoal do Instituto de
Socorros a Náufragos. Foi heróico o esforço despendido,
evidenciando-se as guarnições das lanchas salva-vidas CEGO DO MAIO, esta
trazida de comboio, propositadamente da Póvoa de Varzim, a titulo gratuito, sob
o comando do patrão Manuel António Ferreira, “O Lagoa”, e a RIO DOURO, de
Leixões, capitaneada pelo patrão José Rabumba, “O Aveiro”, dois verdadeiros
“Lobos do Mar”, que salvaram, respectivamente 50 e 52 vidas, apoiadas pelo
rebocador TRITÃO da Junta Autónoma das Instalações Marítimas dos Portos do
Douro e Leixões.
Por cabo
de vaivém, lançado a 350 metros, vieram para terra em 52 horas de trabalho
constante 92 náufragos, tendo-se destacado, pela sua dedicação e saber, a
corporação dos Bombeiros Voluntários de Matosinhos-Leça sob o comando do sr.
coronel Laura Moreira, bem como alguns elementos da Cruz Vermelha Portuguesa e
dos Bombeiros Voluntários do Porto, Viana do Castelo e Vila do Conde. Entre
quase centena e meia de pessoas condecoradas pelos serviços prestados aos
náufragos do VERONESE, contava-se o Sr. Dr. Manuel Monterroso, por ter sido o
primeiro clínico a chegar a desempenhar as suas funções que
estabeleceram na Capelinha da Boa Nova e no posto fiscal.
Da
Estação de Socorros a Náufragos da Foz do Douro, seguiu a carreta com material
de socorros a náufragos puxada por força humana voluntária, e meu pai com 13
anos de idade, já moço de traineira e das embarcações dos pilotos, e admitido a
piloto da barra em 1926, lá seguiu também a dar o seu contributo a empurrar a
carreta até ao lugar da tragédia, só que se perdeu do restante pessoal, e por
lá andou cerca de três dias, quase sem dormir, esfomeado e encharcado, até que
tomou o rumo de casa a pé, na Cantareira, e à sua espera estava o pai,
pescador, que não era para brincadeiras, que fora a Leça à procura dele, sem
que o encontrasse, pregando-lhe umas valentes cinturadas que nunca mais as
esqueceu.
José
Pinto d’Almeida, “Pantaleão”, piloto da barra do Douro e Leixões, que se
reformou como piloto-mor por volta de 1929, exímio no lançamento do foguetão, e
sempre pronto, acorrendo a qualquer naufrágio na barra e na costa, tendo
salvado muitos náufragos, mesmo como piloto-mor, e segundo consta também
acorreu ao lugar do naufrágio do VERONESE para orientar o lançamento de
foguetões para estabelecimento do cabo de vaivém para resgate dos naufragados,
tendo a sua participação sido muita activa e meritória. O pessoal da estação de
Socorros a Náufragos da Foz do Douro lançou 10 foguetões, e os Bombeiros
Voluntários de Matosinhos-Leça lançaram 18.
O Paquete
de carreira VERONESE procedia de Liverpool, seu porto de registo, com carga
geral e 20 passageiros, tendo escalado Vigo, onde embarcara 122 emigrantes,
aparentemente destinados ao Brasil, Uruguai e Argentina.
Alguns
navios que navegavam ao largo da costa, ao receberem o pedido de socorro do
VERONESE, aproximaram-se do local da tragédia, mas nada podendo fazer seguiram
o seu rumo, dentre deles o paquete VAUBAN, do mesmo armador do VERONESE, se bem
que de maior porte.
As
operações de salvamento duraram mais de 48 horas devido ao estado do mar. Houve
38 vitimas, das quais 5 elementos da tripulação.
Realmente
os trabalhos de salvamento não deixaram nada a desejar, representando um
esforço enorme. Basta dizer-se que, tendo sido salvas 89 pessoas, foi
necessário puxar a braço 178 vezes o cabo de vaivém, portador
da bóia calção, que tinha 300 metros de comprido.
A 16,
cerca da 1 hora da tarde, chegava diante do naufrágio, vindo de Lisboa o
rebocador salvádego da armada Nacional NRP BERRIO, que trazia a bordo material
próprio para salvamento de náufragos, mal chegou tentou aproximar-se do
VERONESE, mas teve de desistir, em vista da forte agitação marítima, pelo que
se foi abrigar no porto de Leixões, ficando a aguardar o momento oportuno de
poder prestar o seu auxílio.
No dia
24, como o mar estivesse mais calmo, foram feitas as primeiras tentativas de
ida a bordo. Trabalho que se realizou com êxito. Assim pouco depois das 10
horas da manhã, seguiram desta cidade para Leixões Mr. Dawson, director da
agência Garland, Laidley & amp; Co., Ltd., que há dias chegara de
Lisboa, e Mr. Garland, director na cidade do Porto da mesma agência
consignatária do VERONESE, e curiosamente perto do local do naufrágio, junto à praia de Leça, residia Mr. George Fimister, um Escocês, de Aberdeen, também um dos directores da agência Garland, Laidley & Co., Ltd., da praça do Porto.
O
trajecto foi feito em automóvel da firma, e uma vez ali chegados,
reuniram-se-lhes o Capt. Charles Turner, comandante do paquete e outros
oficiais do navio, embarcando todos em seguida a uma conferencia havida com a
autoridade marítima de Leixões, numa embarcação rebocada pela lancha gasolina
HERMES, propriedade da dita agência, que largou do porto de serviço, cerca de
uma hora depois, em direcção ao vapor naufragado.
No mesmo
barco seguiram 6 estivadores e o seu mestre Eduardo de Oliveira. Ao
chegarem perto do paquete, foram tomadas providencias, a fim de evitar qualquer
desastre e, depois de varias evoluções, foi levada a cabo com todo êxito a
abordagem, entrando no VERONESE todas as pessoas mencionadas e ali se
conservando durante bastante tempo, aproveitando-o em percorrer todas as
dependências do paquete, que haviam sido poupadas pelo mar, e retirando grande
numero de aprestos náuticos, roupas e alguns haveres dos tripulantes, vários
apetrechos de bordo, livros de escrituração e ainda alguns valores que se
encontravam nas cabines de 1ª classe do lado de bombordo, o que tudo foi
trazido para Leixões, onde chegaram pela 4 horas da tarde.
No porão
do navio apareceram três cadáveres, de dois homens e de uma mulher, colocados
de horrorosa maneira. A mulher, seminua, com as mãos crispadas, estava entalada
entre os ferros dos beliches de 3ª classe, no meio de uma avalanche de
enxergas, malas e caixas. Os homens, esfarrapados também entre bagagens, tinha
nos rostos contorcidos a nota de quanto foi terrível a sua agonia. Vinte e
cinco trabalhadores andaram retirando alguns salvados para bordo da
lancha-motor HERMES, aparecendo abertas algumas malas, que talvez os seus
proprietários, no meio da sua angústia, tivessem arrombado para lhes retirarem
os valores portáteis, na esperança de salvamento.
Também se
retiraram de bordo as malas do correio que se destinavam a Buenos Aires.
Montevideu e Rosário e o vapor salvádego CAP FINISTERRE entrara em Leixões, a
fim de tentar os seus trabalhos no resgate do VERONESE.
No dia
seguinte os estivadores voltaram ao navio, num barco rebocado pela lancha
gasolina PATRIA, da firma Baptista & Cia-, a fim de retirarem para
terra mais material, e trouxeram os três cadáveres que até então não fora
possível retirar de bordo, tendo os mesmos sido removidos para o cemitério da
Agramonte, na cidade do Porto.
Dois
escaleres do navio naufragado também se salvaram.
Para
Lisboa partindo da estação de São Bento, foram 77 náufragos do VERONESE, na sua
maioria tripulantes, onde embarcaram no paquete AVON, da Royal Mail Lines,
Londres, com destino a Inglaterra, mostrando-se todos muito reconhecidos,
nomeadamente o capt. Charles Turner, pela forma carinhosa porque foram
tratados, tanto pelo povo como pelas autoridades.
Mais tarde 130 passageiros embarcaram para o Brasil no
paquete DARRO, da Royal Mail Lines, e os restantes foram para diferentes
portos, embarcando nos navios SALAMANCA e ORITA, ambos da Pacific Steam
Navigation, Londres.
Continuou
sempre uma grande romaria à praia da Boa Nova a ver o barco que, ao largo,
recebia sempre o embate das ondas alterosas, que o atacavam violentamente
naqueles dias de temporal, que nas nossas costas tanto se fazia sentir, sendo
por vezes, de grande violência.
O
naufrágio do VERONESE continuaria por muito tempo a alancear os espíritos.
A
catástrofe deixou o seu rastro de terror, a sua tremenda impressão, que não se
apagaria tão cedo. Os temporais que sobrevieram não deixaram prosseguir com
maior intensidade os trabalhos de salvamento iniciados bravamente em relação
aos náufragos e prosseguindo do mesmo modo ao tratar-se dos objectos, alguns
bem valiosos, que vinham a bordo.
O
comissário do navio ficou em Portugal para fazer um arrolamento de todos os
objectos que apareceram, tendo tomado conta, entre outros, de vinte preciosas
malas pertencentes ao sr. Turnubull, que ia para Buenos Aires, onde é
estabelecido, e as quais foram remetidas ao seu dono pelo paquete ANSELM, da
Booth Line, para Liverpool, onde se recolheu durante algum tempo com a sua
família.
Durante
alguns dias as ondas foram tão violentas que não permitiram a continuação dos
trabalhos. Houve porém, um dia, em que o comandante foi a bordo do VERONESE
percorrer cuidadosamente os compartimentos onde a água ainda o deixava chegar.
O bravo marinheiro pôs nessa tarefa um cuidado e um carinho estranhos, como se
custasse muito a apartar-se da carcaça do seu pobre navio naufragado.
Ao
penetrar na popa do navio o capitão encontrou ainda mais dois cadáveres e, ao
chegar a terra, disse-o, na ansiedade de os remover para o cemitério, mas
debalde isso se tentou porque a água tinha tudo invadido.
Uma
família Inglesa que perdeu dois filhos no naufrágio prometia um prémio de
quinhentas libras a quem encontrasse os corpos dos pequenitos que, segundo
desejavam os seus inconsoláveis progenitores, iriam repousar em Inglaterra em
lugar bem perto dos que tanto os amaram.
Quem sabe
se não seriam as duas infortunadas crianças que o comandante do VERONESE viu e
em cujos cadáveres não foi possível tocar. O mar continuava a arrojar à praia
muitos destroços, que eram recolhidos pela guarda-fiscal.
O
Instituto de Socorros a Náufragos recebia inúmeras felicitações pela forma
porque se realizaram os salvamentos, como se sabe, foram levados a cabo com uma
energia e uma bravura singulares que mais uma vez os nossos bravos marinheiros
souberam mostrar na afirmação do seu valor.
Havia mais
nomes a inscrever nesse “livro” de bravura e honra que já é a epopeia dos
marítimos Portugueses, desses denodados tripulantes voluntários das lanchas
salva-vidas, que arriscaram a vida para poupar a dos seus semelhantes com uma
singular e grandiosa abnegação, que chegou ao seu sublime.
Os
agentes no Porto da armadora Lamport & Holt Line, receberam do sr.
Governador civil o seguinte ofício:
«Exmos.
Snrs. Garland, Laidley & Co., Ltd. – Tendo o governo da Republica
conhecimento do naufrágio ocorrido ontem na praia da Boa Nova, do vapor
VERONESE, pertencente à Companhia Lamport & Holt Line, de que
V.Exas são representantes nesta cidade, incumbe-me de dizer-lhes que sente
profundamente este lamentável desastre, que muito comoveu, no que eu o acompanho,
significando também a V.Exas que continuarei a empregar todos os esforços a meu
alcance para que seja quanto possível minorada tão grande desgraça. Saúde e
fraternidade. – O governador civil, (a) Albano de Magalhães.»
A
resposta foi a seguinte:
«Cumpre-nos
agradecer muito reconhecidos os ofício de V.Exa. datado de 17 do corrente. e
pedimos que V.Exa. transmita ao governo da Republica o nosso reconhecimento,
pelo sentimento tomado de tão grande desgraça, ocorrida pelo encalhe do vapor
VERONESE, e pelas ordens dadas à sua marinha, a fim de prestar com o rebocador
NRP BÉRRIO, vindo expressamente de Lisboa, os seus valiosíssimos serviços de
salvamento, bem como às suas autoridades marítimas de Leixões.
Os
esforços que V.Exa. nos tem dignado prestar com as suas ordens, são dignos do
nosso maior apreço, esperando sempre de V.Exa. a continuação da sua atenção
para esta horrorosa desgraça, e é com o maior agradecimento e máxima
consideração que nos firmamos de V.Exa., atts. vens. e obrigados. (a) Garland,
Laidley & Co., Ltd.»
Eu, que
ingressei na firma Garland, Laidley & Co., Ltd, sedeada na rua do
Infante D. Henrique, 131, da cidade do Porto, no início dos anos 60, recordo-me
de funcionários daquele tempo, já meus superiores, terem dito, que na ocasião
foram para o local do naufrágio, a fim de prestarem assistência aos náufragos,
e acabaram também por prestar ajuda aos bombeiros e pessoal dos Socorros a
Náufragos, na alagem do cabo de vaivém.
O
comandante do VERONESE questionado pelos jornalistas acerca das causas do
encalhe, respondeu-lhes que estava impedido de se pronunciar sobre o assunto,
porque desde que pôs os pés em terra considerava-se prisioneiro do embaixador
Inglês em Portugal.
O
tribunal (Board of Court) considerou o capt. Charles Turnbull, comandante do
VERONESE, culpado pelo acidente, pelo que o seu certificado de capitão foi
suspenso por seis meses, baixando para o posto de imediato durante esse
período. O imediato foi ilibado porque na ocasião do encalhe não estava de
quarto.
O
comandante após as seis horas, que o navio levava de Vigo a Leixões tentou
vislumbrar as luzes dos farolins da barra do Douro e dos molhes de Leixões, e
certamente o farol da Sra. da Luz, só que não conseguiu devido á chuva e à
neblina, tendo ido parar ao local do encalhe.
VERONESE – imo 1120912/ 146,7m/ 7.089tab/ 1 hélice/
458nhp/ 12 nós/ acomodação para 642 pessoas, entre tripulação e passageiros;
01/1906 entregue por Workman Clark & Co., Ltd,. Belfast, à Liverpool,
Brazil & River Plate Steam Navigation Co., Ltd, gestores Lamport
& Holt Line, Liverpool; Durante a estadia em Liverpool foi-lhe
instalada uma nova ponte de comando.
As cores
da chaminé dos navios da companhia de navegação Lamport & Holt Line, e
das suas subsidiárias era azul, faixa branca larga e topo preto; casco preto
com uma lista branca junto à linha de água de vermelho, e superstruturas
pintadas de branco.
Navios
gémeos: VELASQUEZ, também teve a mesma sorte do VERONESE, pois já havia
naufragado devido ao mau tempo e névoa na Ponta da Sela, Ilhabela, Brasil, em
16/10/1908, quando em rota de Buenos Aires para Nova Iorque, 137 pessoas, entre
tripulantes e passageiros, foram salvos por cabo de vaivém; VERDI, torpedeado e
afundado em 22/08/1914 pelo submarino Alemão U53, quando em viagem de Nova
Iorque para Liverpool, pereceram apenas 6 tripulantes.
Segundo consta neste naufrágio foi realizado primeiro filme Português.