segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

D I S C U R S O DE APRESENTAÇÃO DO LIVRO “A BARRA DA MORTE – A FOZ DO RIO DOURO” A 14.04.2007

Exmo. Snr. Eng. Ranção Ferreira
(Depart. de Obras do Instituto Portuário dos Transportes Marítimos)
Exmo. Representante da A.P.D.L.
Ex-Colegas de profissão da Garland Navegação, Vesselmar e K-Line
Minhas Senhoras e Meus Senhores:
Começo por cumprimentar e agradecer a V/ comparência na apresentação do livro intitulado A BARRA DA MORTE – A FOZ DO RIO DOURO, de minha autoria.
Chamo-me Rui Picarote Fernandes Amaro, reformado com 70 anos, descendente de gente ligada às pescas, à pilotagem das barras e à marinha mercante. Sou entusiasta de navios e navegação desde que me conheço, natural da Foz do Douro, onde resido na rua da Cerca, aqui a dois passos desta tão trágica barra do Douro, que com os seus mareantes sempre foi esquecida pelo poder politico. Frequentei o curso da escola comercial e depois de passar por áreas relacionadas com o mar, entrei ao serviço das agências de navegação Garland, Laidley e Vesselmar e durante cerca de 30 anos, entre outros cargos, exerci a actividade no atendimento aos navios, que lhe vinham consignados nos portos do Douro e Leixões, nos tempos em que o porto do Douro tinha um movimento razoável de navegação comercial, área essa que não me era alheia, devido às minhas anteriores andanças, desde criança pelos cais de Leixões, margens do rio e barra do Douro, além de acompanhar meu pai em algumas manobras de navios, sempre com enorme espírito de observação, pelo que como não poderia deixar de ser tornei-me muito mais familiarizado com a actividade marítimo-portuária de ambos os portos.

Embora, anteriormente, já tenha prestado a minha colaboração ao enorme mundo dos entusiastas de navios e navegação, iniciei-me em 1998 a escrever no vetusto mensário local O PROGRESSO DA FOZ textos relacionados com a construção da nova barra do Douro, da qual sempre fui um fervoroso apoiante mas respeitando sempre a opinião contrária, todavia discordava das soluções, que se pretendia impor a uma nova barra, com certos artificialismos caricatos, que de certeza nada resolveriam e seriam destruídos em qualquer ocasião de temporal desfeito, além da maresia em fúria vir a causar danos incalculáveis nas margens ribeirinhas do estuário e prejuízos aos seus moradores e às embarcações ancoradas ou varadas em terra, como ocorreu por essa altura desde as Pastoras até aos martirizados lugares da Cantareira e Sobreiras.
Note-se que o Cabedelo, bastante elevado e extenso na sua largura, outrora era a protecção natural das margens estuarinas e localizava-se diante do dique da Meia Laranja e o Cais Velho ou do Touro, ou seja onde hoje se encontra bem assente o eficiente Molhe Sul, salvo na época invernosa, que se estendia muito a norte, acabando por criar dificuldades sem conta aos seus mareantes, nomeadamente aos pilotos da barra na condução dos navios, se bem que em minha opinião e de outras pessoas mais entendidas, sem desprestigiar o projectista, o quebra-mar transversal poderá vir a criar problemas de assoreamento em caso de cheias prolongadas e grandes maresias. É que o estuário e as suas áreas adjacentes atingem proporções de inertes para dar e vender e isso à priori não se nota, no entanto em contrapartida, esse quebra-mar, aliado ao molhe norte dará uma melhor protecção à barra, ao canal de navegabilidade e ao estuário.
Agora o que não se pode admitir, é o que ocorreu no primeiro semestre de 2006, em que dois navios flúvio/marítimos de pouco calado, tivessem ficado retidos de saída, com a respectiva carga nos porões, durante cerca de oito dias, devido ao Cabedelo, bastante distante do seu berço natural, se encontrar estendido a lés-nordeste, para lá do cais do Marégrafo, assoreando o canal de navegação, junto da bóia da Cantareira, além de outros dois, que aguardavam entrada e que tiveram de seguir para outros destinos. Navios esses, que nem pelo norte dessa bóia poderiam navegar, devido ao total assoreamento (aliás, não seriam os primeiros a fazê-lo). Note-se que a navegação comercial, hoje em dia, não admite demoras, cujos custos diários são elevadíssimos. As pescas não admitem paralisações e as embarcações de recreio passam ao largo e procuram barras mais seguras. Actualmente, salvo um ou outro interregno a navegação mercante flúvio-maritima cruza a barra com regularidade e após a conclusão da obra, segundo consta a barra passará a estar aberta à navegação 24 sobre 24 horas, salvo em ocasiões de grande tempestade ou cheias, mas a isso também os grandes portos mundiais estão sujeitos.
Na minha actividade profissional, no atendimento de navios estrangeiros na época invernosa, nomeadamente holandeses, quantos capitães se insurgiam com a falta de condições de segurança da barra, e diziam eles construam dois quebra-mares, um a norte e outro a sul, bem fora, que direccionados para oés-sudoeste ultrapassando a rebentação, que na barra é usualmente de noroeste, e então a V/ barra deixará de ser de risco. Um deles Kapt. Leonard M de Kok, após ter o seu navio, quase encalhado no cabeço da barra, recusou-se, perante o seu armador, a demandar de futuro a barra do Douro e teve o apoio da tripulação, que incluía ex pescadores da Afurada e a sua recusa concretizou-se. O certo é que nunca mais voltou a demandar a barra com o seu navio Mariscal Lopez, nem os outros três navios da companhia e muitos outros se lhe seguiram.
John W. Cowie, comandante, que foi de vários vapores da companhia Moss Hutchinson Lines, Liverpool, veterano na barra, cujas cinzas do seu corpo foram lançadas à barra do Douro em 19/07/1957, por vontade própria, cuja placa de bronze comemorativa se pode ver no dique da Meia Laranja, como homenagem ao sitio mais perigoso e temeroso, no qual muitas vezes julgou ir perder a vida e a dos seus tripulantes. Pena é ainda não se ter dado o seu nome a uma rua, esplanada ou mesmo cais junto da barra!
Actualmente, a barra e o rio é cruzado por navios rio-mar, com alguma regularidade, salvo um ou outro interregno, que vão atracar aos cais de Sardoura e Várzea do Douro, a fim de carregarem granitos. Hoje mesmo, devem estar prestes a sair a barra dois dessses navios! Há necessidade de cativar outros tráfegos mas para isso, a entidade gestora da via navegável e os concessionários daqueles cais têm de oferecer custos competitivos, porque hoje em dia a concorrência é feroz e tem de contar com a via-férrea e a estrada.
Nos meus primeiros trabalhos, bati-me tanto n’O Progresso da Foz como no Jornal de Noticias (Página do Leitor) para que a parca classe piscatória Fozeira do ancoradouro/varadouro da Cantareira fosse preservada e as suas embarcações e artes o pudessem utilizar. Felizmente tudo leva crer, que lá continuarão, com futuras infra-estruturas mais interessantes e funcionais e porque não, também os outros proprietários possam continuar a utilizar aquele espaço para encalhe e reparos das suas embarcações!? Note-se que o ancoradouro/varadouro da Cantareira e agora mais abrigado da acção destruidora do mar, é um dos maiores do porto do Douro!
Neste mesmo local, assisti a naufrágios de pequenas embarcações de pesca em que os seus desventurados camaradas perecerem engolfados por montanhas de ondas traiçoeiras e muitos outros foram resgatados pelo salva-vidas Gonçalo Dias da Afurada e pelo Visconde de Lançada, da Cantareira, este timonado pelo seu patrão, o carismático Zé Bilé e pelo seu sota Rodrigo, e nomeadamente pelas lanchas de pilotar P4, P5 e P9, conduzidas pelos cabos-piloto Manuel de Oliveira Alegre (Marage), Aires Pereira Franco e pelo seu mestre Eusébio Fernandes Amaro (Colega), coadjuvados pelo seus motoristas e camaradas, que eram alternativa àqueles dois salva-vidas do Instituto de Socorros a Náufragos. Gente marinheira de tempera, que enfrentava o perigo em favor do próximo!
Recordo-me de vários naufrágios, encalhes ou de embarcações de maior porte em dificuldade e em alguns casos antevi o acidente. Jamais esqueci o pequeno Meteoro, que se virou na barra e submergiu de imediato, morrendo 7 tripulantes e o prático da barra Pedro Reis da Luz, salvando-se apenas dois homens e eu a julgar que era o meu pai que o conduzia de entrada. Já lá vão muitos anos, contudo ainda hoje me sinto apavorado, só de me lembrar do arrastão bacalhoeiro João Martins, 60 homens de equipagem e o meu pai, piloto que conduzia o navio, quase encalhado no banco da barra, a bater de popa no fundo, em anoitecer invernoso, com mar e água de cheia, os familiares da equipagem a assistir em terra e eu com os meus olhos a puxar o navio para bom canal. Aquela hora, com a vinda da noite, nem um se salvava! Felizmente, só por milagre, tudo acabou por correr de feição.
Apesar de não ser desses tempos, consigo descrever a maior parte dos acidentes marítimos, pelo menos desde 1926, quase que ao pormenor, cujo relato escrito ou verbal me foi legado por meu pai, José Fernandes Amaro Júnior (Colega), que foi pescador desde os seus 11 anos e piloto prático da barras do Douro e Leixões (1926/57).
Neste meu trabalho, consta entre outros textos A Tragédia do Porto, do Deister, A Tragédia Marítima do 27 de Fevereiro, A catástrofe maritima de 1 de Dezembro, O encalhe do Colares, do Hersilia, do Kurt Hartwig Siemers, O naufrágio da catraia da assistência, A entrada do Strabo sob mar de andaço, Um liso de mar e a barra do Douro, A Cantareira e os seus pescadores, As dificuldades do bacalhoeiro João Martins.
Este trabalho é a minha homenagem a tantos e tantos mareantes, que sulcaram o rio Douro e o porto de Leixões, sobretudo as suas barras em condições difíceis de águas de cheia ou mar de andaço, os quais sempre reclamaram uma barra mais segura, mas a homenagem é também, particularmente dedicada a meu saudoso pai, não esquecendo todas aquelas almas que por lá ficaram, fossem pilotos da barra, tripulantes, camaradas ou passageiros das muitas embarcações de pesca, portuárias, fluviais ou marítimas, que desde sempre naufragaram na trágica barra do Douro, que também foi conhecida por A BARRA DA MORTE.
Não vou aqui esquecer a colaboração de Francisco Cabral, um dos mais reconhecidos entusiastas de navios e navegação e de José Rodrigues Brandão, ex funcionário e tripulante das embarcações dos pilotos da barra, também um dos poucos, ainda entendidos, entre outras matérias, das coisas do rio e da barra.
Antes de terminar um abraço aos colegas d’O Progresso da Foz que comigo estão nesta luta pela nossa terra.
Uma coisa lhes afirmo, com toda a certeza, ao adquirirem esta obra, bastante pormenorizada e ilustrada, não se irão arrepender.
Um muito obrigado a todos.
RUI PICAROTE AMARO

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