OS LUGRES QUE SURGIRAM, DE REPENTE, DA NÉVOA DO ATLÂNTICO
Os lugres surgiram, de repente, da névoa do Atlântico, e luziram ao sol no claro em que também íamos navegando, a bordo de um veleiro Finlandês, em viagem da Austrália para Inglaterra, depois de havermos dobrado o Cabo Horn. Eram três lugres, navegando juntos. Ao princípio pensei que fossem grandes "yachts", empenhados nalguma regata oceânica, da Europa para a América.
Eram navios de três mastros e de cerca de cerca de trezentas toneladas. De linhas graciosas, vistos à distância pareciam de facto navios de recreio. Contudo não tardei em verificar que vinham demasiado carregados para serem "yachts".
Quando já mais próximos, cruzaram a nossa esteira, reparei que iam cheios de barquitos, pintados de vermelho e castanho, empilhados no convés, em rumas de seis botes de altura. Levavam imensa gente e em ambos os bordos tinham amarradas às enxárcias bóias de barris. Se bem que os convés fossem atravancados com aqueles botes pequenos e de boca aberta, não se viam salva-vidas nem turcos. Notei tudo com minúcia porque passaram uns atrás dos outros em coluna graciosa, singrando sem esforço e com elegância muito perto da nossa grande galera e para que lhe pudéssemos ler os nomes – MARIA DA GLÓRIA, NEPTUNO II, ARGUS. /in A CAMPANHA DO ARGUS, de Allan Villiers - Ed. 1951/.
Pois este ARGUS, da campanha de 1929, era nem mais nem menos do que o nosso ANA MARIA e foi o antecessor do actual ARGUS/POLYNESIA, que há pouco passou de novo a arvorar a bandeira verde-rubra e se encontra acostado à Gafanha da Nazaré, e a grande galera era a famosa GRACE HARWAR, que hasteava a cor branca, cruzada de azul, da Finlândia.
http://sailing-ships.oktett.net/11.html
A DESPEDIDA
A 17/04/1958 cruzava de saída a barra do Douro, já de velas desfraldadas e auxiliado pelo rebocador fluvial MERCÚRIO 2º, o nosso puro lugre à vela ANA MARIA, tão querido das zonas ribeirinhas do porto do rio Douro, e com os familiares dos tripulantes e pescadores, das margens junto da barra, acenando lenços na despedida, além de curiosos sempre presentes nestas ocasiões, máquinas fotográficas disparando para a posteridade.
Pois apesar de velhinho, o mais antigo navio da frota bacalhoeira, um produto dos estaleiros de Dundee, Escócia, de 1873 para o armador William Thomsom, que foi um dos fundadores da afamada The Ben Line Steamers, Ltd., de Leith, e que em 1875, preservando o nome de ARGUS, viera para Portugal pelas mãos da Casa Bensaúde, de Lisboa, e em 1941 fora trazido para Massarelos, adquirido pela firma Portuense Veloso, Pinheiro & Cia, Lda, que lhe alterou o nome para ANA MARIA, quem diria que na tarde daquela dia se fazia de rumo a noroeste, na sua derradeira travessia do Atlântico Norte, tendo naufragado a 07/09/1958, já no final da campanha, felizmente sem perda de vidas.
O lugre Ana Maria navega ao largo da barra do Douro, após ter largado o cabo de reboque do Mercúrio 2º e ter desembarcado o piloto em 17/04/1958 na sua derradeira campanha aos Bancos da Terra Nova / Imagem da noticia do diário O Primeiro de Janeiro / .
NOTICIA DO NAUFRÁGIO
Os navios de pesca á linha que pairam nos pesqueiros da Terra Nova têm sofrido duramente as contingências da procela. Nunca a frota bacalhoeira sofrera tão pesadas baixas em unidades de pesca como no decurso desta campanha. Dir-se-ia que este ano fora avassalado por um mau presságio. Mais uma notícia chegou a relatar sucintamente um novo naufrágio:
Nova Iorque, 8 - A tripulação de um lugre Português, em dificuldades no noroeste do Atlântico, foi recolhida por dois arrastões de nacionalidade Espanhola - informou a US Coast Guard.
Um S.O.S. do lugre à vela Português ANA MARIA foi transmitido na noite passada para a unidade de busca e salvamento da US Coast Guard desta cidade. Uma embarcação de pesca retransmitiu a mensagem, indicando que o lugre estava a afundar-se a 320 quilómetros a sueste do Cabo Race, na Terra Nova. As mensagens de rádio não indicavam a natureza das dificuldades em que se encontrava o lugre nem o número de tripulantes e pescadores – (R).
MAIS NOTICIAS SOBRE O AFUNDAMENTO DO VELHINHO LUGRE
A tripulação do lugre naufragado era oriunda dos centros piscatórios da Afurada, de Vila do Conde, da Gafanha da Nazaré e da Póvoa do Varzim. Em sequência do telegrama de Nova Iorque, a que se fez referência, a US Coast Guard mais tarde informou que os naufragados foram recolhidos a bordo de um arrastão Espanhol. Na continuação destas informações, fornecidas pela agência Reuter. O quartel-general de busca e salvamento da Royal Canadian Air Force (RCAF), em Halifax, na Nova Escócia, confirmou que 40 tripulantes e pescadores do lugre ANA MARIA foram levados pelo USCGC SPENCER (W36).
http://www.valtechdata.com/SPENCER2006/SpencerArt.htm
http://ww2db.com/ship_spec.php?ship_id=490
O lugre á vela, cujo registo foi indicado como sendo da praça do Porto, tinha 85 anos de existência, estava a arder e tinha aberto água em resultado do incêndio, segundo informou a RCAF. Um cutér da USCG mais tarde bombardeou e afundou o navio Português a fim de evitar que se tornasse um perigo para a navegação.
No Grémio dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau, foi recebida uma comunicação que confirma o afundamento do velho lugre, da praça do Porto, e que todo o seu lotamento de 40 homens estava a salvo. O Grémio está a tratar do seu repatriamento.
È o quarto lugre bacalhoeiro naufragado nos mares da Terra Nova no curto período de um mês. Aos atrasos das pescas acrescenta-se a perda de navios. O lugre ANA MARIA era o mais pequeno da frota bacalhoeira – o mais pequeno e o mais antigo, pois como atrás se disse fora construído pelos estaleiros de Dundee em 1873 para o armador William Thomson, que foi o fundador da The Ben Line Steamers, Ltd. (William Thomson & Co, Ltd.), de Leith. De airosa silhueta, dominada pela sua mastreação de duas alturas dera sempre provas da sua estabilidade e resistência ao mar. Era construído totalmente em madeira de carvalho.
O ANA MARIA zarpara do seu ancoradouro habitual de hibernação, no rio Douro, diante do lugar do cais de Massarelos, para uma viagem directa aos pesqueiros dos mares da Terra Nova. Navegava à vela. Durante decénios fizera esplêndidas campanhas à "Terra dos Bacalhaus". Pelo entardecer de 17 de Abril findo - data da sua partida para a "Faina Maior", os que viram a sua silhueta perder-se na linha do horizonte da imensidão do mar, caso do autor do blogue, mal diriam que daquela viagem não mais regressaria ao seu porto de armamento.
Navegava o ANA MARIA, desta vez debaixo das ordens do capitão Joaquim Agonia Vieira, de Vila do Conde. Ocupava o lugar de imediato o mais antigo homem do mar em serviço na frota bacalhoeira: O capitão José Fernandes Pereira Júnior, oriundo de Ilhavo, figura típica conhecida na gíria marítima pelo "Zé Lau". O velho lobo do mar há mais de 65 anos que sulca as águas do Atlântico. Na sua odisseia é mais um naufrágio que tem para contar… Coincidência curiosa: tanto o ANA MARIA como o seu piloto "Zé Lau" quase se igualavam na idade.
NOTAS
O lugre LOUSADO debaixo de mau tempo nos Grandes Bancos /Inverno na Terra Nova - Jerónimo Osório de Castro /
Questionavam-me há uns tempos porque razão o ANA MARIA e o PAÇOS DE BRANDÃO não limpavam nem pintavam o fundo, durante a hibernação no rio Douro, pois chegavam de mais uma campanha na Terra Nova, descarregavam o produto das suas capturas, e logo de seguida começavam por baixar os mastaréus e todo o poleame e de seguida iniciavam os consertos, pinturas e preparativos para a próxima campanha, e jamais se viu aqueles lugres subirem ao plano inclinado, docagem em dique seco ou realizarem querenagem, e chegada a hora de rumar para a Faina Maior, lá iam todos pintadinhos de branco sem que o fundo fosse limpo e pintado.
Parece-me que há bastantes anos os dois lugres, e possivelmente outros também, viram os seus fundos revestidos de cobre, e não mais foi necessário fazerem querena, o que até então era um procedimento usual.
Eu tenho uma vaga ideia de na minha infância ter visto um dos dois em querena, com uma enorme inclinação a um dos bordos, e parte lateral do fundo à vista, com espias amarradas à parte superior dos mastros e nos cabeços em terra, ou do lado do rio em ancorotes ou barcaças. O seu fundo estava a ser revestido de cobre.
E por falar disso, no mesmo ancoradouro do lugar do cais de Massarelos, em anos distantes, houve uma enorme tragédia, que atingiu calafates, pintores e carpinteiros navais, havendo feridos e mortos, devido aos cabos que prendiam o navio se terem partido, e naturalmente, o bojo foi atingir os infelizes.
Há um outro aspecto que gostava e muito agradecia, que alguém entendido nas pescas dos Grandes Bancos, do tempos daqueles dois lugres, me esclarecesse:
Usualmente quando havia previsão de um grande ciclone, a mundialmente conhecida "Portuguese White Fleet" suspendia e arribava ao porto de S. João da Terra Nova. Será que o ANA MARIA e o PAÇOS DE BRANDÃO, por falta de motor auxiliar e só se moverem com a ajuda do vento, permaneciam fundeados nos Bancos aguentando a borrasca ou também se dirigiam àquele bom porto de abrigo!?
Fontes: Jornal de Noticias; USCG.
Rui Amaro
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