terça-feira, 8 de outubro de 2013

CRÓNICAS DA MARINHA - “MAR TRÁGICO” - Pelo C/Almirante J. Correia Pereira

                                
O salvadego NRP PATRÃO LOPES prestando assistência a uma barca / desnho de autor desconhecido /.

Ainda a dolorosa impressão da tragédia de 8 de Fevereiro pairava na nossa memória, com as suas trinta e duas vidas perdidas no Cabo Raso, e já temos a lamentar novo sinistro não menos trágico com a perda total de 13 marinheiros! O mar, insaciável na sua fúria, continua a devorar vidas após vidas, parecendo não se contentar senão com lautos banquetes onde tudo, vidas e bens se servem numa voracidade de louco esfomeado.
O silêncio que rodeia esta nova tragédia sem sobreviventes para nos dar conta do que se passou nas terríveis horas de luta com o mar, deixa-nos o campo aberto às conjunturas que os mais acostumados às lides do mar possam fazer sobre a origem da tremenda tragédia que levou para o fundo do mar o rebocador NEIVA e a fragata FIGUEIRA DA FOZ e com eles as vidas dos seus tripulantes.
Tratava-se de um serviço de reboque, operação de mar sempre trabalhosa e delicada, a oferecer muitos perigos, tanto para o rebocador como para o rebocado, pois que só deve ser dirigida por quem tenha uma longa prática deste género de trabalho e possua as qualidades de bom marinheiro.
A minha muita prática destes serviços, como comandante do salvadego PATRÃO LOPES, autoriza-me a fazer alguns comentários sobre reboques de alto mar, destinados a poder elucidar os menos versados nestes assuntos.
Dada a responsabilidade do rebocador, num serviço desta natureza, por lhe competir atingir o objectivo desejado, - a condução do rebocado de um porto a outro – é o comandante ou patrão do rebocador quem deve dirigir toda a manobra, desde a preparação do reboque à saída, até largar o rebocado à chegada. Para este fim deve ter em atenção o pessoal a levar, a derrota a seguir e a escolha do dia da partida en conformidade com o estado do tempo.
As dificuldades de luta com um reboque no alto mar são, em geral, resultantes do estado do tempo e do mar, e da fraca velocidade com que é possível navegar com reboque. O reboque, com a velocidade de 8 nós, é já excelente, mas esta velocidade fica logo reduzida a 6 nós ou menos, se o mar e vento se levantam contrários ao rumo a seguir.
Começa aqui a luta com o mar. Se o mar é muito e o rebocador não consegue romper no sentido do caminho desejado, o melhor é capear e aguardar melhor tempo. A capa, em reboque, faz-se largando por mão o cabo de reboque, deixando o rebocado ao sabor do mar sempre sob vigilância do rebocador que capeará a pequena distância aguentando o mar pela amura e com as máquinas trabalhando apenas com a força necessária para dar um pouco de governo e manter o mar aberto pela proa.
Por aqui verifica-se desde já a vantagem de o patrão traçar a sua derrota o mais pelo largo possível, pois a terra é um inimigo terrível e muitos marinheiros se perdem pela atracção exercida por ela debaixo de mau tempo. Também se reconhece a enorme vantagem de o rebocador possuir um grande raio de acção. Um reboque tanto pode durar dois dias como quatro ou mais e é preciso que o rebocador se aguente no mar, todo o tempo necessário, para nunca abandonar o rebocado.
Por último o cabo é, talvez, o mais delicado problema a resolver. Deve o rebocado levar pessoal dentro ou não? Se não for por qualquer motivo, absolutamente impensável para a manobra, dou de conselho, logo à saída do porto, se amarre o leme a meio do rebocado e se recolha o seu pessoal no rebocador. À entrada do porto de chegada se passará o pessoal para bordo do rebocado, para facilitar a manobra. Isto tem a vantagem de não haver escrúpulos de cortar ou largar um reboque se sentirmos fazer este correr perigo o rebocador. Com pessoal a bordo é preciso uma coragem sobre-humana para, debaixo de mau tempo e mar alteroso, cortar um reboque e abandonar à sua sorte o rebocado com vidas dentro!
É claro ter este meu conselho inconvenientes, resultantes da falta de pessoal no rebocador quando se queira renovar o reboque, mas como só se passará novamente o cabo depois de acabado o mau tempo, não será difícil, já com o mar a cair, fazer essa manobra com o pessoal mandado para o rebocado.
Os problemas de reboques são numerosos e surgem a quem os tende resolver de um momento para o outro e mais complicados se tornam à entrada e saída dos portos.
Dizia-se no meu tempo de mar ser preciso ao pessoal dos rebocadores ter olhos nos dedos. Assim é. Os riscos são permanentes e contínuos; um cabo que rebenta, um reboque recorre, etc.
Que teria passado no rebocador NEIVA para ele se afundar também?
Não possuía ele nem um pequeno radiotelefone. Instrumento hoje tão vulgar que até as pequenas “enviadas” os têm para nos comunicar o que se ia passando nos momentos trágicos e pedir auxilio? Ou se existia não funcionaria? Estas perguntas podem ter resposta e o proprietário do NEIVA deve ser as condições em que tinha o seu barco.
Por vezes admitem-se noções de economia que devem ser combatidas por quem de direito. Assim, no caso de pequenos rebocadores ou de velhos barcos de pesca, não é estranho ouvir dizer não valer a pena dotá-los com todos os apetrechos modernos de navegação, como se as vidas conduzidas por eles não tivessem o mesmo valor que as dos tripulantes de barcos grandes ou novos!
Faça-se tudo para evitar a repetição de tragédias destas, que arrepiam a alma, e não entregue ao acaso a vida dos nossos homens de mar, tão merecedores de serem acarinhados.
In jornal “O PRIMEIRO DE JANEIRO” __/03/1954.
Rui Amaro    


 

     

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