O SANTA MAFALDA, sobre as pedras, é batido pela forte ondulação.
Um dos tripulantes chega a terra trazido pelo cabo de vaivém
O SANTA MAFALDA partido ao meio, é batido profundamente pelas vagas
23/01/1966 - Em frente a S. Julião da Barra, numa zona da barra onde o mar obriga às maiores cautelas nas manobras dos navios que cruzam a barra, pela sua estreiteza e por ser semeada de rochedos e bancos de areia, ocorreu ontem mais um naufrágio, cujas consequências, entretanto, felizmente, não foram além dos elevados prejuízos materiais.
O mar encapelado, devido ao vento forte que soprava do quadrante sul, tornava perigosa a navegação. No entanto, os navios da frota bacalhoeira do arrasto, como estava previsto, suspendiam e aprestavam-se para seguir, rumo aos bancos de pesca da Terra Nova e Gronelândia, a fim de iniciarem mais uma campanha. Da dezena e meia, destinados a tão espinhosa faina, três iam já de abalada, quando o sinistro foi assinalado.
Eram 11h30, aproximadamente.
As águas revoltas da baixa-mar transpunham, espectacularmente, a muralha da estrada marginal. A neblina envolvia o espaço, dando ao Tejo um aspecto sombrio. Manhã de pura invernia. Percorrendo o estreito corredor da barra Norte, de quilómetro e meio de largura, entre o Forte de S. Julião e o Farol do Bugio, deslizava, sofrendo os impulsos da agitação das águas, o arrastão SANTA MAFALDA, da praça de Aveiro, da Empresa de Pesca de Aveiro, propriedade do comendador Egas Salgueiro, tendo a bordo duas tripulações, num total de setenta e um homens que na Gronelândia fariam a recolha do peixe, uma naquele arrastão e a outra num outro navio, recentemente adquirido pela mesma empresa, e ainda havia a bordo, um cachorro, mascote de bordo.
O SANTA MAFALDA do comando do capitão Asdrúbal Capote Teiga, passava em frente de S. Julião, onde já se verificaram outros encalhes, no último dos quais, foi vítima o navio-motor Alemão CORDOBA, sofrendo um rombo no casco, que o reteve, durante dias, no porto de Lisboa.
Navegando a velocidade reduzida, batido por rajadas de vento violento, aquele arrastão sofre uma avaria de leme, cujo sistema eléctrico – como mais tarde o comandante do navio declarou aos jornalistas – levando o SANTA MAFALDA trancado a estibordo.
O navio sem governo permaneceu à deriva, ao sabor do vento sudoeste e da corrente e foi impelido para perto da margem direita, até que um enorme rochedo localizado a cerca de trezentos metros da Fortaleza, entre as pedras da Torre e de Carcavelos, conhecido por Pedra da Laje, e frente à piscina, o imobilizou e lhe terá produzido um enorme rombo no costado.
O faroleiro de S. Julião, sem esconder a perplexidade que lhe causou o naufrágio, pôs-se imediatamente em comunicação com a Rádio Naval de Cascais, a participar a ocorrência e a dar alarme dentro da Fortaleza, onde desde logo foram tomadas todas as disposições.
E ao meio-dia, o rebocador PIONEIRO tentava já prestar os primeiros socorros. Prevendo qualquer emergência, três rebocadores do porto de Lisboa pairavam ao largo.
De Cascais, navegando a toda a força das máquinas, chegou também o vapor dos Pilotos, COMANDANTE MILHEIRO, sempre atento para situações destas, e que foi de grande préstimo.
Sem demoras, compareceram as corporações de Bombeiros Voluntários de Cascais, Parede, Oeiras e Paço de Arcos, com algumas dezenas de homens, viaturas e ambulâncias.
Sob orientação do comandante Carmo de Mira, de Cascais, foram montados de terra para o navio, de dois pontos diferentes, dois cabos de vaivém.
Entretanto, não obstante a situação não se afigurar dramática, dada a curta distância que separava o navio da margem, três homens da equipagem do SANTA MAFALDA tomados de pânico, muniram-se de cintos de salvação e lançaram-se ao mar, vindo a ser recolhidos, com as naturais dificuldades, por uma lancha do vapor dos Pilotos, que os transportou para o rebocador PIONEIRO.
Foi, assim, através daquela lancha que continuou a prestar valiosa colaboração que os náufragos foram recolhidos, após se ter conseguido estabelecer um género de cabo de vaivém com o vapor dos Pilotos, que se posicionou a barlavento, e muito próximo do SANTA MAFLADA.
Grupos de soldados da Engenharia de Costa, grumetes da Armada e bombeiros desempenhavam-se abnegadamente, da arriscada tarefa, puxando as três centenas de metros de cabo que fazia o circuito do navio para a terra.
Ao atingirem o forte, os tripulantes do barco sinistrado eram transportados em ambulâncias para o edifício do Instituto dos Socorros a Náufragos, em Paço de Arcos, e ali prontamente assistidos por médicos e enfermeiros. O estado de todos eles era de grande abatimento. Encharcados e enregelados pelo frio, apresentavam diversas equimoses nas pernas. Provocadas a bordo e durante o trajecto, nos cabos. Eram 14h00, quando o último tripulante chegou a terra. O cão de bordo também veio para terra trazido por um náufrago. No entanto os trabalhos prosseguiram, pela tarde adiante, com enormes dificuldades, derivadas ao estado do mar, que se manteve encapelado.
O ministro da Marinha esteve a ser informado como ocorreram as operações de salvamento, do Forte de S. Julião, onde chegou às 14h10, acompanhado pelo chefe do Estado maior Naval e pelo capitão do porto de Lisboa.
O comandante Asdrúbal José Sacramento Capote Teiga, de 46 anos, capitão do SANTA MAFALDA, falou aos jornalistas no Instituto de Socorros a Náufragos, onde fora socorrido, bem como toda a tripulação.
- Entre S. Julião e Cascais, tivemos uma avaria no sistema eléctrico do leme, que ficou trancado a estibordo. Paramos e metemos as máquinas à ré a toda a força. Foi inútil: O SANTA MAFALDA guinou para terra e foi projectado pelas vagas, para cima das pedras. Quando abandonei o navio, a casa das máquinas estava alagada. Dadas as condições do tempo, o perigo era iminente.
O comandante Teiga disse, ainda, que anda na pesca do bacalhau há mais de 16 anos, e comanda navios desde 1957, sendo este o primeiro acidente da sua carreira.
Quarenta e um membros da tripulação do navio sinistrado vieram por via marítima até ao cais da Rocha do Conde de Óbidos, onde desembarcaram. Pouco depois foram conduzidos à Policia Marítima seguindo mais tarde para o refeitório da Junqueira, onde já se encontravam os restantes camaradas.
Algumas pessoas da família dos náufragos deslocaram-se ali, levando-lhes roupas e calçado, pois a maioria não teve tempo de salvar o mínimo objecto pessoal.
Ontem mesmo, os tripulantes do SANTA MAFALDA seguiram para os seus lares, em Setúbal, Fuzeta, Sagres e Vila Praia de Ancora, utilizando o caminho de ferro. Os pescadores de Aveiro, Murtosa e Ílhavo seguiram para estas localidades em dois autocarros. A Mutua dos Pescadores de Bacalhau estudará a forma de cobrir os prejuízos sofridos por aqueles tripulantes, especialmente na perda de haveres. Entretanto, foram já distribuídos agasalhos e outros objectos de uso pessoal aos 71 tripulantes do SANTA MAFALDA.
Segundo informações colhidas cerca da meia-noite, pela reportagem de «O Comércio do Porto» junto de entidades responsáveis, o SANTA MAFALDA considera-se praticamente perdido.
O navio continua encalhado junto à muralhas do Forte de S. Julião da Barra, ao qual se mantém ligado por um cabo de vaivém.
As operações da tentativa de salvamento do arrastão não se puderam realizar devido à forte agitação marítima e, agora aguarda-se que na segunda-feira se possa fazer alguma coisa, embora as esperanças de êxito sejam mínimas.
O SANTA MAFALDA está sob a vigilância da Policia Marítima e, hoje, rebocadores do porto de Lisboa vão tentar safá-lo, numa derradeira tentativa.
Um dos arrastões bacalhoeiros que cruzara a barra do Tejo, o SENHORA DO MAR, pouco antes do encalhe do SANTA MAFALDA, já no Atlântico e ao largo da costa Portuguesa, declarou-se incendio a bordo. O fogo foi no motor da proa, e pode ser dominado pela tripulação. Dado que o navio não podia prosseguir a viagem para os Grandes Bancos, regressou ao Tejo, onde fundeou em frente da Rocha do Conde de Óbidos, a fim de a avaria ser reparada. Não há desastres pessoais a lamentar.
31/01/1966 – O mar após dez dias de fúria violenta, partiu ontem em duas partes o arrastão SANTA MAFALDA, que encalhara nos baixios situados em frente ao Forte de S. Julião da Barra.
Durante os próximos dias, o navio que ficou separado da proa e da popa, rebentando a chaparia da meia-nau, a qual foi levada para o largo desfeita, continuará, certamente, a ser desmantelado, no próprio local, visto não parecer fácil que saia de cima da plataforma rochosa que o sustém.
Ontem, de manhã, ainda estiveram no Forte de S. Julião da Barra as cinco equipas do Porto de Lisboa, num total de 35 homens, sob a orientação do comandante Carvalho Pereira, que mantinha esperanças de salvar o navio, que entretanto ficou dividido em três secções distintas.
Perante o acidente, limitaram-se a cortar os cabos de vaivém que ligavam o arrastão ao Forte, a fim de impedir que, com os puxões dados pelos destroços do navio no cabo se estragasse o equipamento instalado em terra.
Nos dois únicos dias que o mar permitiu o acesso ao SANTA MAFALDA e o trabalho a bordo, conseguiu salvar-se unicamente o equipamento eletrónico da ponte do comando.
O valor do navio com os melhoramentos com que posteriormente foi beneficiado, está avaliado em cerca de quarenta mil contos.
SANTA MAFALDA (2) – imo 5531239/ arrastão lateral/ 71m/ 1.220tb/ 18.515 quintais/ 1xWerkspoor 1.100hp: 08/1948 entregue pelo Cantieri Odero Terni Orlando, Livorno, Itália, à Empresa de Pesca de Aveiro (EPA), Aveiro, especialmente para ser destinado à pesca do bacalhau. Era o segundo navio da EPA denominado SANTA MAFALDA, pois o primeiro foi um lugre à vela de três mastros, famoso por ter sido dos primeiros a aventurar-se a pescar nos perigosos mares do gelo da Gronelândia, e em 1937 foi-lhe instalado um motor diesel. Para substituir o navio sinistrado a EPA encomendou uma nova construção de arrasto pela popa, o SANTA MAFALDA (3), 80,3m/2.049tb, que foi entregue em 04/1968 pelos Estaleiros da Lisnave, Rocha, Lisboa, e que continua em serviço activo.Fontes: jornal “O Comércio do Porto”, Luis Filipe Morazzo (de um comentário neste mesmo blogue), Miramar Ship Index.
Imagens: Jornal "O Comércio do Porto"
(continua).
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Rui Amaro
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1 comentário:
Nasci em 1965, e de certeza que foi com esse cão que cresci. Sempre ouvi os meus pais dizerem que ele tinha sido salvo de um naufrágio de um bacalhoeiro, e que tinha sido notícia num jornal.
Posso dizer que foi um cão maravilhoso, na barriga do qual dormi muitas vezes, e que penso que foi muito feliz. Adorei encontrar a história que hoje vim procurar mais uma vez, porque falo muitas vezes nesse meu grande amigo. Obrigada!
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